Folha de S. Paulo


Ousada decisão monetária na Índia torna ações de Trump triviais

Mukesh Gupta/Reuters
A man displays a new 2000 Indian rupee banknote after withdrawing from a bank in Jammu, November 11, 2016. REUTERS/Mukesh Gupta ORG XMIT: DEL11
Homem mostra nova cédula de 2.000 rúpias, que vale cerca de R$ 100

Em 16 de novembro de 2016, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi anunciou que as notas de 500 e 1.000 rúpias (US$ 7,50 e US$ 15, respectivamente) seriam retiradas de circulação imediatamente. A medida reduziu em 86% o valor total do dinheiro em circulação na Índia. Além disso, as cédulas que perderam a validade teriam de ser depositadas em bancos até o dia 30 de dezembro, e o saque dos fundos relacionados a elas sofreriam restrições.

Pelo critério de ousadia, essa medida tomada por um líder democraticamente eleito, em um país tão grande, torna trivial tudo aquilo que o presidente norte-americano Donald Trump fez até agora. Devemos encará-la como uma ação decisiva na luta da Índia contra a sonegação de impostos, o mercado negro e a corrupção generalizada? Ou deve ser entendida como um ato arbitrário e destrutivo, da parte de um líder democrático, mas antiliberal? Hoje, as duas descrições parecem válidas. Em longo prazo, tudo dependerá do que vai acontecer a seguir.

Que um país política e economicamente estável imponha subitamente uma desmonetização tão inesperada e tão radical é algo sem precedentes. Por que qualquer governo eleito infligiria tamanho choque, especialmente se levarmos em conta que a economia indiana depende muito de transações em dinheiro? Como país de renda entre baixa e média, a Índia ainda abriga grande número de pessoas que estão excluídas do sistema financeiro formal. Além disso, a Índia depende mais do que é comum do dinheiro em espécie, até mesmo em comparação com países semelhantes: há estimativas de que os pagamentos em dinheiro vivo ainda respondem por 78% das transações dos consumidores.

De acordo com o "Panorama Econômico 2016/2017", uma publicação do Ministério das Finanças da Índia, o objetivo da nova política é quádruplo: "Combater a corrupção, a falsificação, o uso de cédulas de alta denominação para atividades terroristas e, especialmente, a acumulação de 'dinheiro escuro', gerado por atividades não declaradas às autoridades tributárias". Esses objetivos são populares para muitos indianos, que vêm tolerando o incômodo causado com surpreendente calma, na esperança de que os trapaceiros recebam o que merecem.

Os objetivos também devem ser considerados razoáveis. Pouca gente negaria que a Índia sofre de corrupção e sonegação de impostos em larga escala. Mas a ação também pode semear desconfiança permanente quanto às propostas do governo. Ainda que a doença seja grave, a cura parece custosa. Qual pode ser seu custo total, e que benefícios ela poderia gerar?

Os custos de curto prazo são evidentes. Nas lacônicas palavras do "Panorama Econômico", esses custos se traduzem em "inconveniências e dificuldades", especialmente para as pessoas nos setores econômicos "informais e que dependem de dinheiro em espécie". Já que centenas de milhões de indianos são muito pobres, isso não deve ser encarado como problema trivial.

Um dos fatores que geram custos de curto prazo é o dramático declínio do suprimento de dinheiro. De acordo com o "Panorama Econômico", até dezembro o suprimento de dinheiro havia caído em 35%, com relação à demanda. Embora o crescimento da moeda em circulação tenha despencado, o crescimento nos depósitos exigíveis, que é parte do mesmo processo, em larga medida compensou esse efeito. Como resultado, as taxas de juros também caíram.

Ao analisar os custos de curto prazo, o estudo enfatiza três choques: o choque sobre a demanda agregada, devido ao declínio do montante em circulação e à perda permanente de riqueza para aqueles que optaram por não declarar o dinheiro que mantinham em espécie; o choque sobre a demanda agregada, devido ao papel do dinheiro em espécie como insumo produtivo (por exemplo na agricultura); e o choque da incerteza ampliada. No geral, conclui o estudo, a desmonetização pode ter reduzido temporariamente o PIB da Índia, por conta de seu efeito sobre a base monetária, em 0,25% ou 0,5%, com relação ao referencial de 7% anuais de crescimento.

Mas mesmo em curto prazo, também haverá benefícios. A análise sugere que até 2% do PIB do país era representado por cédulas que refletiam atividades econômicas clandestinas. Parte dessa riqueza indevida terá desaparecido, e outra porção terá começado a sofrer tributação. Isso aconteceu porque os detentores de dinheiro não declarado foram forçados a escolher entre declará-lo, lavá-lo ou perdê-lo. No geral, a política permitiu que o governo tributasse o dinheiro do mercado paralelo, ao menos uma vez e talvez permanentemente, dados os riscos de reter patrimônio em dinheiro. O resultado líquido foi uma transferência de riqueza dos criminosos para o governo. Não é fácil sentir pena das vítimas dessa situação.

Além do mais, benefícios significativos podem emergir, em longo prazo. O choque deve, acima de tudo, acelerar o movimento de riqueza líquida para o sistema financeiro e também reforçar a transparência, honestidade e eficiência na economia. Um resultado significativo poderia ser uma "digitalização" mais ampla das transações financeiras, ainda que isso requeira reformas complementares, como facilitar os pagamentos digitais dos indianos desprovidos de smartphones. Outro poderia ser uma tributação mais efetiva. No prato oposto da balança, precisamos ponderar a irresponsabilidade que a medida revela. Se um governo ousa fazer algo assim, haveria alguma coisa que não ouse tentar?

O equilíbrio entre custo e benefício dependerá em última análise do que acontecerá agora. Um ponto importante é que é preciso restaurar a conversibilidade plena dos depósitos bancários para dinheiro. Em longo prazo, a Índia pode acompanhar outras economias no caminho para uma economia em que dinheiro em espécie quase não existirá. Mas seria absurdamente prematuro tentar isso agora. Além disso, o governo precisa criar uma infraestrutura e mecanismos de apoio para garantir a inclusão financeira da população, o que inclui sistemas de pagamento eletrônicos. Não menos importante é agir contra a corrupção, o que inclui melhorar a estrutura e a administração dos impostos. Uma realização recente quanto a isso foi a introdução do imposto sobre bens e serviços —uma forma de imposto sobre valor adicionado. Também vital é a reforma do financiamento de campanhas eleitorais. Os políticos não estão acima de suspeitas, no que tange à corrupção. Por fim, uma repetição da medida seria devastadora para a confiança dos indianos. Isso simplesmente não pode acontecer.

É muitas vezes difícil distinguir entre líderes decididos que tomam decisões impopulares para o bem de seus países e líderes que tomam decisões arbitrárias em benefício próprio. Os historiadores talvez venham a julgar a desmonetização indiana como exemplo do primeiro tipo de decisão. Isso ainda é incerto. Vejamos o que Modi ousa fazer a seguir.


Endereço da página:

Links no texto: