Folha de S. Paulo


O populismo não criará um mundo melhor

Será que a subida de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos marca o final da influência do "homem de Davos"? O termo foi inventado pelo cientista político Samuel Huntington, morto em 2008 e participante nas reuniões anuais do Fórum Econômico Mundial de Davos, para definir uma categoria de pessoas que ele desprezava.

Huntington argumentava que essas pessoas "têm pouca necessidade de lealdade nacional, veem as fronteiras nacionais como obstáculos que felizmente estão desaparecendo, e consideram governos nacionais como resíduos de um passado cuja única função é facilitar as operações mundiais da elite".

Assim, será que estamos a ponto de testemunhar um abandono decisivo das aspirações dos participantes do Fórum Econômico Mundial? E, se estivermos, isso é desejável? As respostas são "sim" e "não".

As crenças centrais de Davos vêm sendo a cooperação mundial e a globalização econômica. Mas a fé nesta última se viu abalada depois da crise financeira mundial de 2007-2009. A relação entre o comércio internacional e o produto bruto mundial está estagnada desde então, depois de dobrar entre o começo dos anos 70 e 2007. O estoque de investimento estrangeiro direto continua a subir como proporção da produção mundial bruta, ainda que lentamente. Mas o estoque de ativos financeiros transnacionais efetivamente caiu.

Esse enfraquecimento da globalização reflete em parte a exaustão das oportunidades fáceis de ampliação do comércio mundial e o crescimento frágil da demanda desde a crise. Mas também reflete mudanças nas políticas públicas: a intensificação da regulamentação do setor financeiro, depois da crise, teve forte efeito local, o que reduziu o apoio a atividades transnacionais. A liberalização do comércio internacional estacou, e alguns estudos apontam para uma ascensão nas medidas protecionistas.

A posse de Trump como presidente dos Estados Unidos, nesta semana, pressagia um aperto considerável do protecionismo. O Tratado Transpacífico, negociado por seu predecessor Barack Obama, parece morta. A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento nem chegou a nascer. O mais importante é que Trump ameaça se concentrar em acordos bilaterais, impor tarifas a produtos importados de parceiros importantes, especialmente a China e o México, e tratar com desdém a OMC (Organização Mundial de Comércio). Essa abordagem pode nos levar de volta ao tipo de caos na política comercial ocorrido entre a primeira e a segunda guerras mundiais.

Ao mesmo tempo, estranhamente, Trump parece determinado a abolir muitos dos regulamentos impostos ao setor financeiro depois da crise. Com isso, os homens de Davos poderão assumir o risco financeiro que desejam, mas não estariam mais livres para comercializar bens e serviços. É difícil encontrar uma explicação racional para a fórmula. O que é um reflexo da incoerência intelectual característica do populismo.

Mas não se engane: Trump bem pode derrubar o templo do comércio mundial. Se ele impuser tarifas punitivas (e injustificáveis) à importação de bens chineses, a União Europeia pode bem seguir seu exemplo a fim de proteger seus produtores contra uma disparada nas importações de bens chineses. A China com isso se sentiria forçada a retaliar. O sistema de regras do comércio internacional desabaria.

E o mesmo aconteceria com a ideia de um sistema mundial cooperativo. O comércio internacional seria só um aspecto de uma mudança maior. Se o governo dos Estados Unidos adotar a mentalidade da Rússia de Vladimir Putin —introspectiva, dedicada apenas ao mais estreito autointeresse e indiferente às normais morais das relações internacionais—, podemos ver o desaparecimento até mesmo de um sistema de mínima cooperação mundial.

Isso seria o fim da Pax Americana —o período de hegemonia dos Estados Unidos iniciado ao final da Segunda Guerra Mundial. O mundo não encontrará um substituto para os Estados Unidos fácil ou rapidamente, especialmente quando forças populistas e protecionistas semelhantes estiverem operando em outras regiões, especialmente a Europa. Boa parte do trabalho que os países precisam fazer juntos —enfrentar a mudança no clima e os desafios do desenvolvimento econômico— se tornaria impossível.

Assim, esse também poderia ser o fim do mundo administrado para —e muitas vezes por— os homens e mulheres de Davos. Muita gente vai achar que isso não tem nada de mau. Mas essas pessoas deveriam pensar bem sobre aquilo que desejam.

Como já aconteceu tantas vezes no passado, arrogância gera ambição. Os homens de Davos desconsideraram o papel dos Estados legítimos e poderosos como sustentáculos do sistema mundial. Esqueceram-se da necessidade de que os bem sucedidos reconheçam suas responsabilidades para com as sociedades que tornaram possível o seu sucesso. Ignoraram, acima de tudo, a obrigação de compartilhar com os perdedores dos ganhos da globalização. O entusiasmo com o qual muitos deles se apressaram a aproveitar oportunidades de pagar menos impostos foi vergonhoso.

Alguns dos projetos da era da liberalização econômica mundial também foram longe demais —especialmente a liberalização insensata da economia, a expansão imprudente da zona do euro e o encorajamento à imigração em larga escala. Cidadania pode não importar muito para os homens de Davos, mas é muito importante para grande número de seus concidadãos.

Esses erros, porém, não foram nem de longe tão ruins quanto aqueles que provavelmente serão cometidos pelos novos populistas. Os homens de Davos vivem no mundo dos negócios; eles não empregam instrumentos de coerção em massa, e em lugar disso buscam se envolver em transações comerciais mutuamente benéficas; e acreditam que um mundo pacífico e essencialmente cooperativo seja desejável. Não é difícil imaginar elites muito mais brutais, estúpidas e destrutivas que eles.

A reação populista pode ter se tornado inevitável. Mas ela não conduzirá a um mundo melhor nem mesmo para aqueles que a apoiam. Sim, as autoridades econômicas deveriam ter prestado mais atenção àquilo que estava acontecendo com os cidadãos comuns, mas o populismo simplório que agora está em ascensão em breve se provará muito pior que a arrogância intelectual da elite de Davos.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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