Folha de S. Paulo


Assim como Big Ben, democracia do Reino Unido precisa de reforma

Niklas Hallen'n/ AFP
Big Ben, situado na torre do Palácio de Westminster, sede do Parlamento britânico
Big Ben, situado na torre do Palácio de Westminster, sede do Parlamento britânico

Na sexta-feira, galguei os 334 degraus da Elizabeth Tower. Isso pode significar pouco para os leitores. Mas estou falando, embora por outro nome, do Big Ben —a mais famosa torre de relógio do planeta.

Na metade do século 19, quando foi construído, o relógio era uma realização tecnológica. Mas também era um símbolo mundialmente reconhecido do Reino Unido e seu sistema de governo. O Big Ben é a torre do relógio do Parlamento.

Quando inaugurado, em 1859, ele era conhecido apenas como Clock Tower [torre do relógio], de acordo com o projeto de Augustus Pugin. Big Ben era o apelido (de origem incerta) para o sino de 13,5 toneladas, cujo toque acompanha inúmeras transmissões de rádio desde 1923.

Em 2012, a torre passou a levar o nome da rainha Elizabeth, para celebrar seu jubileu de diamantes no trono, e se equiparou à Victoria Tower, na ponta sudoeste do Parlamento, que passou a levar o nome da ancestral da atual rainha no dia em que esta completou seu jubileu de diamantes como monarca. Para o mundo, o nome continua a ser Big Ben.

Visitas só são possíveis por indicação de um membro do Parlamento. Além do prazer de concluir a ascensão, é fascinante ver o imenso mecanismo e ouvir do campanário o estrondo ensurdecedor do sino. Infelizmente, a torre agora está fechada para restauração.

Quando construída, ela abrigava "o maior e mais preciso relógio sonoro de quatro faces do planeta". E era também produto do amadorismo britânico. George Airy, o astrônomo do reino, criou as especificações. Edmund Beckett Denison (mais tarde barão Grimthorpe), advogado e relojoeiro amador, projetou o mecanismo.

Que um amador tenha recebido missão tão importante nos diz muito sobre a cultura favorável ao risco que existia no ápice da era vitoriana, e o mesmo se aplica à natureza inovadora de seu relógio, de precisão sem precedentes. E resta um toque de excentricidade: os operadores usam velhas moedas de um penny para alterar o centro de gravidade do pêndulo na medida necessária.

O mecanismo é mais que um lembrete da era em que o Reino Unido foi o centro de inovação do planeta. Também serve como monumento à inovação política. O direito do Parlamento eleito a governar o país foi estabelecido pela força das armas no século 17.

Mas a longa jornada rumo ao sufrágio universal só começou com a Grande Lei de Reforma de 1832. Ela aboliu os distritos eleitorais de baixa população, concedeu representação às cidades industriais e ampliou o eleitorado. Em 1859, o Parlamento já estava a caminho do voto universal para os adultos, uma jornada concluída (para os maiores de 21 anos) apenas em 1928.

A torre, relógio e sino são símbolos da ideia de democracia parlamentar —e estão entre as maiores contribuições do Reino Unido. No topo da torre, por sobre as câmaras do Parlamento, me comovi diante da força e da sutileza dessa ideia: a do governo por pessoas escolhidas pelo voto de todos os cidadãos adultos. Compreendo por que a causa da soberania parlamentar é tão potente. Apesar de todos os erros da política e dos políticos no mundo real, ela é uma ideia mágica.

Mas a democracia parlamentar do Reino Unido, da mesma forma que a Torre Elizabeth e o Palácio de Westminster, precisa de reforma para enfrentar os desafios dos novos tempos. A saída britânica da União Europeia (Brexit) torna essa reforma ainda mais urgente. Eis quatro mudanças necessárias:

Primeira, o Reino Unido escolheu (erradamente, em minha opinião) recorrer a referendos a fim de resolver questões constitucionais. Se deve ser esse o caminho, a votação necessária para aprovação de mudanças deve ser mais alta que uma pequena maioria dos votos válidos. O número de votos requeridos deveria ser estabelecido em 50% do total de eleitores com direito a voto ou 60% dos votos depositados. A maioria das constituições conta com proteção desse tipo.

Segunda, o sistema de voto distrital produz resultados que distorcem fortemente a representação, em um país multipartidário. Assim, a questão da reforma eleitoral precisa ser reaberta.

Terceira, a Câmara dos Lordes sofre de inchaço e desordem. Se o Reino Unido pretende manter uma câmara com membros indicados e não eleitos (uma ideia que tem mérito), é preciso controlar melhor o poder de indicar seus membros.

Por fim, diante do envelhecimento da população, há concentração excessiva de poderes nas mãos dos velhos. O futuro de um país administrado pelo passado não tem como ser brilhante. A solução é permitir que pais votem em nome de filhos menores de idade.

O Big Ben é um poderoso símbolo do papel da democracia parlamentar no passado e presente do Reino Unido. Mas o futuro do sistema parlamentar britânico depende de reformas hoje, da mesma forma que acontece com a torre que o simboliza para o planeta.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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