Folha de S. Paulo


Corrupção na China se tornou algo normal, e crise é questão de tempo

Beto Barata/PR
Hangzhou - China, 02/09/2016. Presidente Michel Temer durante encontro com o presidente da República popular da China, senhor Xi Jinping, na casa de hospedes oficial do Lago Oeste. Foto: Beto Barata/PR ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O presidente do Brasil, Michel Temer, e o presidente da China, Xi Jinping

O presidente Chinês Xi Jinping, que recentemente recebeu o título de "líder central" da China, é um homem com duas missões. A primeira é extirpar a corrupção do Partido Comunista chinês. A segunda é reformar a economia do país.

Essas metas, porém, se provarão incompatíveis caso ele continue a concentrar seu esforços na purificação e fortalecimento do corrupto Estado/Partido leninista.

Em 2014, Xi descreveu o desafio que a China enfrenta da seguinte maneira: "A corrupção nas regiões e setores se entrelaça; os casos de corrupção por conluio estão aumentando; o abuso da autoridade sobre o pessoal e o abuso da autoridade executiva se sobrepõem; a troca de poder por poder, poder por dinheiro e poder por sexo é frequente; os conluios entre funcionários do governo e empresários e os conluios entre superiores e subordinados se entrelaçaram; os métodos de transferir benefícios de uns a outros são ocultos e muito diversificados".

Essa severa denúncia pode bem ter sido feita em benefício próprio. Como aponta Minxin Pei em um brilhante livro, "China's Crony Capitalism" [o capitalismo de compadres da China]; é fácil demais para um aspirante ao posto de homem forte usar acusações de corrupção como forma de solapar seus rivais. Mas o método é muito efetivo exatamente porque as acusações são plausíveis.

Usando provas fornecidas pelas autoridades chinesas, o professor Pei mostra que os conluios e a corrupção são onipresentes. Eles distorcem a economia, degradam a administração e roubam o partido de sua legitimidade social.

A corrupção é de fato um câncer. Mas não surgiu por acidente. A explosão de corrupção, do começo dos anos 1990 para cá, é o avesso das reformas bem sucedidas.

"O surgimento e o enraizamento do capitalismo de compadres na economia política da China, em retrospecto, é o resultado lógico do modelo autoritário de modernização econômica de Deng Xiaoping", argumenta o professor Pei, "porque as elites que controlam esse poder irrestrito não conseguem resistir a usá-lo para saquear a riqueza gerada pelo crescimento econômico".

A corrupção é o fruto do casamento entre o Estado/Partido e o mercado. Ela se espalha por coerção, por sedução e por imitação. E quando a corrupção se torna normal, o sistema corre o risco de chegar a um ponto de colapso. É exatamente isso que Xi teme.

A característica especial da corrupção chinesa é que ela coincidiu com um imenso aumento na riqueza do país. A corrupção não impediu que isso acontecesse. De fato, corrupção e crescimento caminharam juntos. E pode bem ser que, por algum tempo, eles tenham se sustentado mutuamente; a corrupção azeitava o crescimento, que por sua vez bancava a corrupção.

As políticas públicas chinesas ao longo desse período tiveram três características principais: liberalização dos mercados, descentralização do poder, e direitos de propriedade contestados e inseguros.

O controle da propriedade foi descentralizado, mas isso não conferiu segurança aos proprietários. Quando o controle sobre a propriedade é um privilégio, não um direito, como acontece na China, as pessoas dotadas de poder político têm a capacidade de se fazer, e de fazer àqueles a quem favoreçam, imensamente ricos.

E foi exatamente isso que elas fizeram. Os servidores do partido expropriaram ativos valiosos do Estado a quem deveriam servir, incluindo terras e minerais.

A necessidade de conluio, para tanto, vem do fato de que o controle dos meios necessários a uma atividade econômica —propriedade e permissões— não cabe a uma pessoa só.

Com isso, alianças de conluio não demoraram a surgir. Algumas são administradas por funcionários importantes do governo (yibashou) —muitas vezes, por secretários regionais do partido—, em um sistema de "colusão vertical".

Outras são administradas por diversos funcionários de autoridade semelhante, em uma forma de "colusão horizontal". E há casos de organizações corruptas comandadas por empresários do setor privado ou mesmo por criminosos.

Em alguns locais, o resultado foi uma forma de "Estado mafioso". A corrupção encontrou lugar até mesmo nos mecanismos disciplinares do Partido Comunista, nos serviços de segurança e nas forças armadas. E todas essas são instituições chave do Estado/Partido.

É possível argumentar, e corretamente, que a corrupção não impossibilitou o extraordinário desempenho econômico da China no passado recente. Mas há quatro argumentos para que isso não deva despertar complacência.

Primeiro, a corrupção tende a se tornar cada vez mais presente e dispendiosa, com o tempo. Segundo, à medida que a população se educa e se torna mais exigente, sua tolerância para com a corrupção e para com as falhas administrativas que ela acarreta diminuirá.

Terceiro, o crescimento econômico está se desacelerando, o que torna mais custoso o desvio de renda para as mãos dos predadores. Por fim, o crescimento está se tornando cada vez mais dependente de inovações da parte dos empreendedores, e é provável que o capitalismo de compadres as sufoque.

A questão, porém, é determinar se é possível fazer grande coisa quanto a isso, além de colocar muita gente na prisão.

A resposta de Xi parece ser mais leninismo e mais mercado. Mas essa é uma combinação altamente problemática.

O motivo para que Deng Xiaoping tenha promovido a descentralização dos processos decisórios é que a China é grande demais para que qualquer outra coisa funcione. Hoje, a complexidade da economia torna o controle político centralizado ainda mais impraticável.

Para todos os efeitos, é impossível que o centro controle as atividades de todos os seus agentes. E tampouco é possível forçá-los a prestar contas ao povo, porque isso destruiria o monopólio do partido sobre o poder.

O Estado/Partido leninista não tem soluções a oferecer para o problema da governança. E tampouco é capaz de oferecer soluções para o problema econômico.

Se o objetivo é uma economia de mercado combinada a um governo razoavelmente não corrupto, os agentes precisam de direitos legais protegidos por tribunais independentes. Mas é exatamente isso o que um Estado/Partido leninista não pode oferecer, já que ele se coloca, por definição, acima da lei.

O Estado/Partido pode governar usando a lei, mas não se deixa governar por ela. Assim, seus agentes estão isentos de qualquer forma efetiva de recurso legal por parte dos cidadãos privados.

Se, como parece provável, os esforços de Xi para combinar a restauração da disciplina leninista a uma liberalização do mercado se provarem impraticáveis, o regime terá de enfrentar uma crise mais profunda. Ela pode demorar a surgir. Mas parece certo que virá, no fim.

Xi tomou o rumo atual por bons motivos. Mas afirmar que suas soluções para os problemas são boas é coisa completamente diferente.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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