Folha de S. Paulo


A transição 'pós-brexit' deve ser prioridade no Reino Unido

Justin Tallis/AFP
A man wearing a t-shirt promoting the 'Britain Stronger in Europe', the official 'Remain' campaign group seeking to a avoid Brexit,as he walks near the Big Ben clock face and the Elizabeth Tower at the Houses of Parliament in central London on June 22, 2016, ahead of the June 23 EU referendum. Rival sides threw their efforts into the final day of campaigning Wednesday, on the eve of Britain's vote on EU membership that will shape the future of Europe. / AFP PHOTO / JUSTIN TALLIS
Homem veste camiseta a favor do "brexit"

O Reino Unido é uma democracia representativa. O repositório da soberania nacional é o Parlamento. Cabe a ele supervisionar a saída do país da União Europeia. Mas só o governo pode decidir como proceder.

Ao fazê-lo, precisa ter em mente aquilo que os eleitores não decidiram no referendo: eles não decidiram transformar o Reino Unido em Cingapura; não votaram por tornar o relacionamento britânico com a União Europeia igual ao relacionamento que o país tem com o Japão; e nem mesmo votaram explicitamente por controles de imigração. Essas opções não constavam da cédula.

Deixar a União Europeia é compatível com ficar no mercado unificado, como acontece com a Noruega; ou com fazer parte de uma união alfandegária, a exemplo da Turquia.

Aqueles que defendem deixar a União Europeia podem fingir que sabem o que quer dizer "brexit", mas isso ainda não foi decidido.

Além disso, aqueles que votaram por permanecer na União também têm direito a se pronunciar. Não é de todo impossível, como argumentou Sir John Major na semana passada, que os eleitores sejam convidados a expressar sua opinião novamente.

No presente, é plausível que Theresa May invoque o Artigo 50 (que deflagra a saída da União Europeia) em março do ano que vem, mas o desfecho provável do processo subsequente seria o mais conflituoso dos "brexits", dois anos mais tarde.

Na ausência de acordo, o acesso preferencial aos mercados da União Europeia (por larga margem os mais importantes para o Reino Unido), e a todos os demais mercados aos quais a União Europeia tem acesso preferencial, seria perdido sem substituição.

Pior, pode não haver tempo suficiente para mudar os procedimentos seguidos pelo comércio internacional britânico, o que geraria o caos.

Para evitar esse destino, um acordo de saída teria de ser ratificado até março de 2019. Para que haja qualquer chance de que isso aconteça, os termos finais de acordo precisam ser definidos seis meses antes.

Se, como parece provável, a União Europeia necessitar de pelo menos dois meses para chegar a acordo quanto a como responder à solicitação britânica, o prazo restante para negociar seria de no máximo 16 meses. E haverá eleições na Alemanha no final do ano que vem. Na prática, isso pode reduzir a janela efetiva para negociações sérias a menos de um ano.

O prazo real pode se provar até mais curto que isso. As empresas precisam planejar como e onde produzir.

Se, como parece quase certo, elas não estiverem claras sobre sua situação até no máximo um ano antes do prazo limite, é possível que algumas, e até mesmo muitas, delas optem por transferir suas atividades à União Europeia. E a essa altura um grande estrago já terá sido causado.

Chegar a qualquer acordo, especialmente dentro de uma janela tão estreita, será muito difícil. Especialmente porque as negociações de saída girarão em torno de dinheiro: quem paga pelo quê, e por quanto tempo.

O paralelo é uma complexa negociação de divórcio na qual o cônjuge que está saindo de casa considera a outra pessoa prepotente, e a pessoa abandonada considera o parceiro inflexível. Ou seja, existe boa chance de que não seja possível chegar a acordo algum dentro do prazo oferecido.

Mas as negociações precisam girar em torno de algo mais que conseguir uma separação completa. Os arranjos subsequentes importam imensamente se o Reino Unido deseja evitar a mais dura saída possível.

Mark Carney, presidente do Banco da Inglaterra, argumentou que o Reino Unido necessitará de arranjos de transição antes que o acordo final de saída seja atingido, dentro de alguns anos. Conseguir um acordo de transição deveria ser a maior prioridade para o Reino Unido.

No comércio internacional, o acordo de transição mais simples é que o país permaneça membro da união alfandegária.

Isso tem muitas vantagens. Primeiro, é a situação existente; segundo, evita a complexidade das regras de origem usadas para determinar que produtos são elegíveis para comércio sem tarifas em um arranjo de livre comércio; terceiro, permitiria que o governo cumprisse sua promessa de proteger plenamente as exportações da Nissan.

A desvantagem de ficar na União Europeia seria remover as funções atribuídas a Liam Fox, secretário de comércio internacional do governo britânico. Mas manter acesso preferencial aos mercados da União Europeia é mais importante que ganhar acesso preferencial a outros mercados, porque os mercados da União Europeia respondem por quase metade dos produtos exportados pelo Reino Unido.

Um acordo de transição nesse sentido deve também incluir um processo simples para certificar que as exportações do país continuam a atender aos padrões da União Europeia.

Essa decisão sobre a união alfandegária faria do acesso ao mercado unificado o foco da negociação. O realismo dita que o acesso atual em larga medida desapareceria. A rejeição pelo governo britânico de poderes supervisórios para a Corte Europeia de Justiça aparentemente torna esse desfecho inevitável, mesmo que o desejo de restringir a imigração não venha a fazê-lo.

O Reino Unido poderia aceitar o livre movimento de pessoas em teoria, e buscar restrições práticas. É improvável que o país obtenha termos melhores do que aqueles que os eleitores rejeitaram em junho.

Outra forma de manter acesso ao mercado unificado seria contribuir com somas substanciais para o orçamento da União Europeia. Isso seria politicamente difícil no Reino Unido, no entanto, e talvez não funcione para a União Europeia sem que haja movimento mais ou menos livre de pessoas.

Em resumo, parece esmagadoramente provável que o Reino Unido perca virtualmente todo o seu acesso privilegiado ao mercado unificado.

Os arranjos de "passporting" —que permitem que profissionais estrangeiros de finanças trabalhem livremente no Reino Unido— desapareceriam. Isso imporia custos significativos às exportações de serviços britânicas.

O advogado britânico Barnabas Reynolds propôs um regime de "equivalência expandida" para os serviços financeiros. Reino Unido e União Europeia tratariam os respectivos regimes como equivalentes para fins regulatórios, sem que eles sejam considerados iguais.

Na prática, é improvável que a União Europeia considere a ideia aceitável. O Reino Unido teria de se estabelecer como centro financeiro offshore, e as empresas britânicas depois criariam subsidiárias na União Europeia. Mas desde que o fluxo de capitais continue a não sofrer restrições, muitas transações continuariam a ser realizadas no Reino Unido.

O que poderia ser objeto de acordo, no entanto, seria a definição de termos relativamente liberais para o movimento temporário de prestadores de serviços.

Para resumir: na dúvida, escolha o mais simples, estúpido.

O tempo deve ser usado para organizar não só a saída, mas uma transição que não perturbe o comércio desnecessariamente.

Quanto ao mercado unificado, o ponto de partida precisa ser o reconhecimento de que imigrantes, especialmente os bem capacitados profissionalmente, são necessários.

O Reino Unido também deveria negociar os melhores termos possíveis de acesso. Mas deve reconhecer que aquilo que vai obter ficará muito aquém daquilo que tem no momento.

Essa é uma consequência inevitável do "brexit".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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