Folha de S. Paulo


Trump eleito não seria nova ordem, mas perigosa desordem mundial

Evan Vucci/Associated Press
Republican presidential candidate Donald Trump, left, walks to shake hands with Democratic presidential candidate Hillary Clinton before the first presidential debate at Hofstra University, Monday, Sept. 26, 2016, in Hempstead, N.Y. (AP Photo/ Evan Vucci) ORG XMIT: NYEV111
Donald Trump, candidato republicano à presidência dos EUA, cumprimenta a democrata Hillary Clinton

Às vezes a História dá saltos. Pense na Primeira Guerra Mundial, na revolução bolchevique, na Grande Depressão, na eleição de Adolf Hitler, na Segunda Guerra Mundial, no começo da Guerra Fria, no colapso dos impérios europeus, na reforma e abertura da China por Deng Xiaoping, no colapso da União Soviética, na crise financeira de 2007-2009 e na "grande recessão" subsequente.

Podemos estar à beira de um acontecimento tão transformador quanto muitos dos citados: a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Isso representaria o fim do Ocidente sob liderança norte-americana como força central nos assuntos mundiais. O resultado não seria uma nova ordem, mas uma perigosa desordem.

O fato de que Trump possa ser um candidato crível à presidência dos Estados Unidos é espantoso. Nos negócios, ele é um caloteiro e litigante serial transformado em astro de reality show. O candidato republicano é um traficante de falsidades e teorias de conspiração. Profere calúnias racistas. Ataca a independência do Judiciário. Recusa-se a divulgar suas declarações de impostos. Não tem qualquer experiência em cargos públicos e suas propostas políticas são incoerentes.

Trump dá a entender que promoverá um calote da dívida pública. Solapa a confiança na ordem do comércio internacional criada pelos Estados Unidos, ao ameaçar revogar passados acordos. Solapa a confiança na democracia norte-americana ao afirmar que a eleição será fraudada. Admira o antigo agente do KGB que comanda a Rússia.

É evidente que numerosos eleitores norte-americanos perderam a confiança nos sistemas político e econômico do país. Isso parece ter acontecido em uma dimensão não vista nem mesmo nos 30, quando os eleitores se voltaram a um político estabelecido. Mas, apesar de todos os desafios que enfrentam, os Estados Unidos não estão em forma tão terrível. São o grande país mais rico na história do planeta. O crescimento é lento, mas o desemprego é baixo. Caso os eleitores escolham Trump —a despeito de suas falhas, exibidas uma vez mais no primeiro debate presidencial, isso nos revelaria coisas sombrias sobre a saúde dos Estados Unidos.

Estamos falando da maior potência mundial, e por isso a questão não é apenas uma preocupação interna norte-americana. O que uma presidência de Trump poderia significar? Prever as políticas de uma pessoa tão imprevisível é impossível. Mas algumas coisas, ao menos, parecem razoavelmente claras.

Os Estados Unidos e seus aliados continuam imensamente poderosos. Mas seu domínio sobre a economia mundial está em lento declínio. De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a porção dos países de alta renda (ou seja, os Estados Unidos e seus principais aliados) cairá de 64% da produção mundial em 1990 (medida em termos de equivalência de poder aquisitivo) a 39% em 2020, e a porção específica dos Estados Unidos no total cairá de 22% para 15% no mesmo período.

Embora o poderio militar dos Estados Unidos continue imenso, há duas ressalvas que precisam ser feitas. Uma é que vencer uma guerra convencional é muito diferente de atingir os objetivos nacionais na região em disputa, como as guerras do Vietnã e do Iraque demonstraram. Além disso, a rápida alta nos gastos chineses com a defesa pode criar sérias dificuldades militares para os Estados Unidos na região Ásia-Pacífico.

Decorre disso que a capacidade dos Estados Unidos para orientar o planeta da forma que preferem dependerá cada vez mais da influência do país sobre os sistemas econômicos e políticos mundiais. Isso não é novidade, evidentemente. É um traço característico da hegemonia dos Estados Unidos desde a década de 40. Mas ganhou importância hoje. As alianças que os Estados Unidos criaram, as instituições que o país apoia e o prestígio que ele tem são ativos verdadeiramente inestimáveis. Todos esses ativos estratégicos estariam em grave perigo caso Trump se tornasse presidente.

O maior contraste entre os Estados Unidos e a China é que os primeiros possuem grande número de aliados fortes. Nem mesmo Vladimir Putin é um aliado confiável, para a China. Os aliados norte-americanos apoiam os Estados Unidos em larga medida porque confiam no país. Essa confiança se baseia na percepção de que os norte-americanos se comportam de maneira previsível, baseada em valores. As alianças do país não deixam de apresentar problemas —longe disso. Mas elas funcionam. A imprevisibilidade que Trump tanto gosta de projetar, e sua abordagem transacional quanto a parcerias, as danificariam de maneira irreparável.

Uma característica vital da ordem mundial liderada pelos Estados Unidos vem sendo o papel das instituições multilaterais, como o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Ao se restringirem às regras de um sistema econômico aberto, os Estados Unidos encorajaram outros países a fazer o mesmo. O resultado foi um crescimento extraordinário na prosperidade; entre 1950 e 2015, a produção real per capita média cresceu em 600% no planeta. Trump não compreende esse sistema. Caso ele venha a ser repudiado, os resultados seriam calamitosos para todos.

A guerra do Iraque prejudicou a confiança na sabedoria e competência dos Estados Unidos. Mas a crise financeira mundial foi ainda mais destrutiva. Muita gente suspeita desde sempre dos motivos dos Estados Unidos para suas ações. Mas essas pessoas imaginavam que os norte-americanos soubesse como administrar um sistema capitalista. A crise devastou essa confiança.

Depois de todo esse estrago, a eleição de um homem tão desqualificado quanto Trump colocaria em questão algo de ainda mais fundamental: a crença na capacidade dos Estados Unidos para escolher líderes razoavelmente bem informados e competentes.

Sob o presidente Trump, o sistema democrático perderia boa parte de sua credibilidade, como modelo para a organização de uma vida política civilizada. Putin e outros déspotas ou aspirantes ao despotismo ficariam felizes. Sua crença de que a retórica quanto aos valores ocidentais não passa de hipocrisia seria confirmada. Mas aqueles que veem os Estados Unidos como um baluarte da democracia teriam motivo para desespero.

Se Trump vier a vencer, isso significaria uma mudança de regime para todo o planeta. Significaria, por exemplo, o fim dos esforços para administrar a ameaça da mudança no clima, talvez para sempre. Mas o simples fato de que ele seja candidato sugere que o papel dos Estados Unidos na ordem mundial está sofrendo uma transformação. Esse papel sempre dependeu não só da competência econômica e militar dos Estados Unidos mas dos valores que o país representava.

Apesar de todos os erros norte-americanos, o ideal de uma república democrática, governada pela lei, continuava visível. Hillary Clinton é uma candidata imperfeita. Trump, porém, é coisa muito diferente. Longe de tornar os Estados Unidos grandes como no passado, sua presidência poderia desmantelar o planeta.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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