Folha de S. Paulo


Uma aposta antiética no cassino do clima

A vitória republicana nas eleições de meio de mandato presidencial nos Estados Unidos foi um triunfo para a estratégia de vilificação prolongada do presidente e obstrução de suas políticas. O resultado terá grandes implicações para o futuro dos Estados Unidos.

Mas também tem implicações para o resto da humanidade. Isso é inevitável, dado o papel dos Estados Unidos como maior e mais tecnologicamente avançada economia do planeta, protetor da economia mundial aberta e maior potência militar. Mas os Estados Unidos também ocupam o segundo posto no ranking de emissores de gases causadores do efeito estufa, e estão entre os líderes em termos de emissões de poluentes per capita.

A consequência mais importante dessa eleição, portanto, pode ser a de sepultar a pouca esperança que ainda restava de enfrentar com seriedade o risco de uma mudança perigosa no clima. Não há como países manterem porções da atmosfera sob seu controle. Mudar a trajetória atual do planeta é uma tarefa coletiva. Sem a vontade política e os recursos tecnológicos dos Estados Unidos, a virada necessária não acontecerá.
Outros países não compensarão a ausência norte-americana, e nem teriam como fazê-lo.

Muitos republicanos parecem ter concluído que a ideia de mudanças no clima causadas pela atividade humana não passa de uma trapaça. Se for, é uma grande trapaça. Basta ler o relatório síntese do Painel Intergovernamental sobre a Mudança do Clima (IPCC).

Seria necessário acreditar que milhares de cientistas se uniram para produzir uma complexa falsificação a fim de promover as próprias carreiras, nem tão bem remuneradas, e diante da quase certeza de que uma trapaça como essa seria descoberta. A hipótese não faz sentido.

O que, portanto, podemos extrair desse relatório?

Ele começa por definir onde estamos. O aquecimento do sistema climático é "inequívoco". As concentrações atmosféricas dos gases causadores do efeito estufa atingem níveis não vistos nos últimos 800 mil anos. Além disso, a emissão de gases relacionados a atividades humanas vem crescendo consistentemente. Também é "extremamente provável" que mais da metade da mudança observada na temperatura mundial de superfície, entre 1951 e 2000, se relacione à atividade humana.

Se mantivermos esse rumo, acrescenta o relatório, mudanças maiores no clima são altamente prováveis. A alta no equilíbrio da temperatura mundial média de superfície causada pela duplicação das concentrações de dióxido de carbono, com relação ao nível vigente antes da industrialização, seria de entre 1,5 e 4,5 graus.

Mas as concentrações de gases causadores do efeito estufa já subiram em mais de 40%. As consequências prováveis de novas altas incluiriam doenças, padrões meteorológicos extremos, insegurança quanto ao abastecimento de água e alimentos, e perda de biodiversidade e ecossistemas.

O relatório também argumenta que a mitigação de emissões e a adaptação aos seus efeitos são estratégias complementares, e não alternativas. Precisamos fazer as duas coisas. Quanto ao custo das medidas de mitigação, o estudo argumenta que políticas eficientes provavelmente limitariam o aquecimento a menos de dois graus com relação ao nível pré-industrial, e envolveriam queda de 1% a 4% no consumo mundial em 2030 e de 3% a 11% em 2100.

Os desafios filosóficos e práticos são imensos. Mas devemos recordar que nem as emissões e nem as consequências climáticas podem ser revertidas: as geleiras derretidas não voltarão. Além disso, quanto mais esperarmos, mais teremos de fazer para limitar o impacto.

Ainda assim, nada sugere, no momento, que a humanidade deixará o caminho que conduz a emissões mais altas, com consequências potencialmente imensas e irreversíveis. Por que isso acontece? Se ignorarmos a acusação de que o aquecimento global não passa de uma trapaça científica, restariam duas justificativas e duas razões.

Uma justificativa é que o custo de agir para mitigar emissões seria extraordinário. Mas é necessário apontar, no entanto, que os custos desses esforços seriam menores, e possivelmente substancialmente menores, do que os custos das recentes crises financeiras foram para os países de alta renda.

As crises reduziram o Produto Interno Bruto (PIB) em cerca de um sexto, ante a tendência precedente à crise, nos Estados Unidos, Reino Unido e zona do euro. Em algumas economias, se os prejuízos forem incluídos na conta, a redução seria ainda maior. E além disso parece provável que essas perdas jamais venham a ser recuperadas.

No entanto, e de modo fascinante, exatamente as pessoas que consideram os custos da mitigação excessivos desejam reduzir a regulamentação do setor financeiro e com isso aumentar o risco de uma repetição da recente calamidade. Além disso, muitos dos oponentes desse tipo de ação acreditam firmemente na capacidade das economias de responder a forças de mercado. Por que, assim, eles não acreditam que os mercados se ajustariam a preços mais altos para as emissões de carbono?

Outra justificativa é a incerteza. E de fato existe muita incerteza, como o IPCC deixa bem claro. Mas não se deve confundir incerteza quanto ao desfecho com certeza de que dado desfecho imaginado não ocorrerá. Trata-se de duas proposições muito distintas. O que você acharia se alguém justificasse sua decisão de fazer ultrapassagens ao dobrar uma esquina com o argumento de que ninguém pode estar certo de que existe um carro vindo na direção oposta?

Decerto acharia que a pessoa está jogando roleta russa. Por que alguém imaginaria que faz sentido agir assim com relação ao único planeta habitável que conhecemos? Se existe incerteza, a solução racional é buscar proteção contra os desfechos mais extremos.

Quais são as razões reais para a recusa, portanto? A primeira é ideologia. Se uma pessoa aceita a existência de grandes externalidades ambientais de alcance mundial, é preciso que aceite também que a política pública tem importante papel a desempenhar no direcionamento dos desfechos de mercado. Não é por acaso que as pessoas que acreditam no laisser faire são as mais ferozmente céticas com relação à mudança do clima. O desejo é pai da negação.

A segunda e mais importante razão é indiferença quanto ao destino das gerações futuras. Por que devemos arcar hoje com custos de mitigação que beneficiarão pessoas que jamais conheceremos, ainda que entre elas estejam nossos descendentes? Afinal, podem perguntar os indiferentes, o que as gerações futuras já fizeram por nós?

A resposta ética a isso é que somos beneficiários dos esforços daqueles que nos precederam, e nossos ancestrais nos deixaram um mundo melhor do que aquele que eles mesmos herdaram. Temos a mesma obrigação ainda que, como nesse caso, o desafio seja tão complexo. Mas por mais forte que possa ser o argumento moral, é muito improvável que ele supere a inércia que vemos agora. As gerações futuras, e até mesmo muitos dos que hoje são jovens, um dia talvez venham a amaldiçoar nossa indiferença. Mas nem ligamos, não é?

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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