Folha de S. Paulo


Vergonha

Na semana mais fria dos últimos 22 anos, São Paulo registra ao menos cinco mortes de moradores de rua. Vemos o debate se voltar à crítica pontual da falta de abrigo. Ouvimos declarações bizarras, como retirar colchões e papelões ser estratégia para evitar "refavelização". O principal sobre esse assunto acaba ignorado. Em todas as cidades do mundo tem gente morando nas ruas. O fenômeno é complexo, mas pode e deve ser enfrentado com soluções que amparem de forma diversificada as pessoas em situação de rua.

Ser gestor público é administrar mais do que o orçamento que temos ou não temos, é tomar decisões que cuidem, de fato, das pessoas e devolvam esperança. Quem mora na rua é cidadão. Alguns estão em situação de drogadição, outros têm alienação mental, há desempregados; alguns nunca tiveram um endereço formal. Uns escolheram a rua, outros foram jogados nela. Há uma complexidade de situações de tal envergadura que não adianta querer colocar todos no mesmo barco.

Para dar início a soluções eficientes precisamos assumir primeiro o respeito, o cuidado e as particularidades dessa população! Para os que querem ser resgatados dessa condição, é necessário ajudá-los a recuperar a autoestima por meio de acolhimento digno e com oportunidades. Desenvolver ações inovadoras tais como o extinto abrigo Boracea, que cuidava de carroceiros e de seus animais. Essa foi a maneira de tirá-los das ruas: guardar suas carroças, instrumento de trabalho, e cuidar de seus animais. Para muitos o cão era o elo afetivo que restava. Tratados com dignidade, alguns conseguiam recuperar vínculos, aproveitar um curso de qualificação e tantas chances de trabalho que lá eram oferecidas.

Uma cidade do tamanho de São Paulo tem que analisar condições de ir além dos abrigos centrais, os mais procurados, pois perto do movimento. Algumas subprefeituras poderiam ter equipamentos de apoio a moradores de rua. Algo visível, bem identificado. Uns vão querer dormir em espaços públicos, outros tomar banho. Muitos vão querer tirar documentos ou trabalhar. Centros de trabalho e geração de renda são espaços para a pessoa se reconstruir.

É uma indignidade a maior cidade brasileira ter pessoas morrendo de frio nas ruas. É chocante ouvir o prefeito dizer que não vai deixar acontecer a "favelização de praças públicas". Coisa bruta e perversa e ineficaz. Não é tirando o colchão da praça que vamos solucionar o problema. É preciso cuidar com competência e não "higienizar". O descaso, ao nem consultar a meteorologia, e a incapacidade de pensar soluções criativas, inovadoras e humanas levaram a procedimentos que nos envergonham como paulistanos.


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