Folha de S. Paulo


Despedida

Esta é a última coluna que escrevo na condição de ombudsman. O segundo período como ''representante dos leitores do jornal'' permitiu-me acompanhar o desenvolvimento de importantes progressos e ameaças para o jornalismo.

Mais do que nunca antes, o jornalismo propriamente dito ameaça tornar-se uma atividade cercada por outros interesses assumidos pelas empresas jornalísticas. A competição mais acirrada, a ação de preferências econômicas e ideológicas sobre o noticiário, o poder do governo, a pressão avassaladora provocada pela televisão na cultura brasileira e o atraso educacional impõem graves restrições ao nível médio do jornalismo que aqui se pratica.

O terreno árduo da reportagem investigativa, o trabalho isolado de questionamento dos poderes estatais e privados, a missão pública de prestação de serviços informativos à sociedade encontram-se pressionados pelo retorno mais fácil propiciado pelo jornalismo de entretenimento e da adesão à ''maioria''.

As injunções voltadas à satisfação de interesses comerciais põem o jornalismo na defensiva.

No Brasil de hoje, a mídia apóia o governo. Não apenas nos editoriais e colunas, onde a opinião é livre.

Também na divulgação acrítica das ações e, principalmente, das intenções oficiais. Aí o governismo serve-se do jornalismo adesista e preguiçoso.

A diferença entre os diversos veículos está no grau de entusiasmo existente. Influi também a cultura de cada veículo.

No passado também foi assim. Esse governo, porém, tem conseguido manter a adesão da mídia por mais tempo, apesar da crise, do aumento das desigualdades e da previsão de que os problemas vão se agravar.

O mercantilismo exagerado e sem princípios gera questionamentos a respeito da mídia. Discute-se a erotização envolvendo jovens e adolescentes, a invasão de privacidade, a importação pelos jornais de qualidade de um estilo de cobertura jornalismo típico da imprensa sensacionalista.

Como afirma o economista carioca Carlos Eduardo Martins, um dos mais assíduos amigos desta coluna, a mídia gastou boa parte do ano falando de fenômenos que ela própria impôs ao público. Ocupou parcela significativa das atenções com temas como princesa Diana, a ex-sem-terra Débora Rodrigues, Carla Perez, Xuxa, Luciano Szafir.

Alguns desses ''fatos'' talvez não chegassem ao conhecimento de muitos leitores de jornal. Mas, como diz o economista Martins: ''Se você não tomou conhecimento, acaba sendo obrigado a esse contato pela mídia, a Folha inclusive. Há um jogo de espelhos e máscaras. A mídia se realimenta do supérfluo e do vazio''.

Muitos desses ''fatos'' recebem destaques nas primeiras páginas de todos os jornais, inclusive a Folha, em muitas edições em seguida. Viram seriados, o que indica muito a respeito daquilo que o jornal considera relevante recomendar a seus clientes, numa espécie de diálogo implícito: ''Mas como? Você ainda não sabe disso?''...

O leitor Martins acha que esse processo vicioso pode gerar um afastamento dos indivíduos, que se perguntam: o que eu tenho a ver com isso? O que isso tem a ver comigo?

O jornal pauta a leitura de milhões de cidadãos. Isso implica enorme responsabilidade ética.

Ética é, porém, matéria de escassa consideração nas redações, premidas pela competição e o ''serviço ao mercado''. Nas escolas, seu ensino é inexistente. Nos cursos de comunicação, a disciplina é ministrada com legislação de imprensa. Ninguém dá a mínima. Não se ensina ética aos jornalistas brasileiros.

As chamadas técnicas de redação e de reportagem a espinha dorsal do curso são inteiramente esvaziadas de qualquer reflexão ética. Essa é a principal razão para o baixo nível médio dos cursos de comunicação, com a qual o governo tem sido conivente até agora. Vamos ver se o provão do meio do ano contempla algum exame de questão ética ligada ao jornalismo.

PRIVILÉGIO BRASILEIRO

A Folha é dos poucos veículos que se dispõe a fazer jornalismo sobre assuntos sobre os quais tem interesse direto e opinião formada. Publicou na terça-feira passada levantamento sobre leis de imprensa em seis diferentes países.

A principal conclusão contraria a tese editorial da Folha sobre o assunto. Não existe país com privilégio semelhante ao advogado pela mídia no Brasil. O setor quer que a nova lei fixe um limite para as indenizações para os crimes cometidos pela imprensa.

Na Argentina, Estados Unidos, França, México, Portugal e Reino Unido, países em que a Folha realizou o levantamento, os meios de comunicação são tratados como qualquer outra instituição ou cidadão. Pagam pelos prejuízos que causarem aos que forem injustamente prejudicados pelo noticiário.

No Brasil, ANJ (jornais), Abert (rádio e TV) e Aner fazem ampla campanha, com destaque nas primeiras páginas e em editoriais de TV, pela isenção de parte da responsabilidade por crimes que cometerem. Alegam que as indenizações poderiam levar as empresas à falência.

Os títulos da Folha (capa: ''Norma de imprensa difere em seis países''; dentro: ''Regras para imprensa variam entre países'') evitam a questão central e podem induzir o leitor a erro. Quanto à questão central, a indenização, as normas não variam. Nenhum deles prevê teto para a pena.

Seja como for, a Folha foi o único grande veículo a abordar o assunto de maneira mais objetiva. Fica uma sugestão: informar sobre os maiores processos que cada grande veículo está respondendo no Brasil. Muita coisa poderá ser explicada a partir daí, pois as penas não têm sido desprezíveis e a mídia raramente as informa, como, aliás, recomenda a nova lei em exame no Legislativo.

OS "ORELHÕES"

Recente encontro da Associação Brasileira de Ouvidores (ABO) registra uma silenciosa revolução na sociedade brasileira. Já existem cerca de 250 ouvidores e ombudsmans no país. Atuam em grandes e médias empresas atendendo aos consumidores. Estão cada vez mais presentes no setor público, onde quase sempre gozam de autonomia para servir aos usuários-cidadãos.

A Folha não tinha idéia do movimento que estava desencadeando ao criar o ombudsman. Foi, em 1989, a pioneira do movimento. Antecipou uma tendência. A iniciativa foi tão bem-sucedida que, agora, a ABO adota um rígido código de ética para ouvidores e ombudsmans. Tenta regular uma atividade que incha, animada pelo Código de Defesa do Consumidor, pela nova consciência geral em relação aos direitos do cidadão e, como não poderia deixar de ser, por gente interessada em faturar em cima do prestígio da nova onda.

No jornalismo brasileiro, a atividade é mantida na Folha, na rádio Bandeirantes de São Paulo e no jornal ''O Povo'', de Fortaleza (a rádio ''O Povo'', do mesmo grupo, também anuncia sua ombudsman). Muitos outros veículos estabeleceram canais com leitores e espectadores. Não são ombudsmans, mas, com diferentes denominações e graus de poder e liberdade, assumem parte de suas atribuições, servindo ao público. É inevitável o fortalecimento dos ''orelhões'', como os ouvidores também são conhecidos.


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