Folha de S. Paulo


Tormenta abala dogmas do jornalismo econômico

Manipulação de caráter ideológico ou desinformação global? Essa é a questão a responder sobre o desempenho da cobertura da crise da economia da Coréia do Sul, antes e depois de ela vir à tona. Não há prova maior de que mais do que nunca informação é sinônimo de dinheiro e poder.

Nestes dias, o mundo ainda tenta se acostumar à idéia de que os chamados ''tigres'' asiáticos têm sérias debilidades econômicas, diferentemente do que analistas economistas e jornalistas vinham divulgando como verdade provada ao longo de vários anos. Nem bem a nova verdade é assimilada, surge um milagroso pacote de ajuda do Fundo Monetário Internacional à Coréia do Sul. Mais uma vez o noticiário assume o caminho errado, otimista, tranquilizador. Mas os investidores vão no caminho oposto.

A moeda sul-coreana continuou se desvalorizando, os índices das bolsas mergulharam ainda mais. Agora, descobre-se que o sistema bancário daquele país está falido numa proporção muito superior à informada. Os especialistas agora sabem que o pacote do Fundo está longe de atender ao que é necessário para controlar a crise. Os leitores demoraram alguns dias para saber das informações não oficiais a respeito da crise coreana.

Subitamente, países da América Latina passam a ser citados como exemplo de economias transparentes, sem práticas duvidosas acobertadas pelos governos, libertas dos vícios do passado, os mesmos desvios que agora acabam de derrubar as antes imbatíveis cidadelas do outro lado do mundo.

Prevê-se para os ''tigres'' latinos e até para o Brasil, por incrível que pareça um futuro animador. Será? Se não estávamos certos antes, por que estaríamos agora?

Ao final, talvez se constate que o tigre coreano saiu da crise mais atrevido e ágil do que nunca. E que nós os bons alunos aqui do outro lado continuamos a combater os mesmos impasses. O ceticismo criado pelo crash mundial testa num novo patamar as capacidades e a independência do jornalismo econômico.

FRANÇA X ABC

Na mesma semana em que se discute tão intensamente com que grau de violência serão reduzidos os salários pagos no setor industrial brasileiro, o Conselho de Ministros da França não se omitiu e aprovou, com validade a partir do ano 2000, a semana de 35 horas de trabalho, com leve redução de salários. O empresariado francês não gostou, mas pode ser uma das saídas para o Brasil. Em alguma medida, tende a ser aplicada cedo ou tarde, quem duvida? Segundo o leitor Guillermo Rallo, não há explicação para o tema não ter sido nem sequer noticiado em nenhuma edição da Folha que ele recebeu em Porto Alegre na semana que passou.

MUNDO XUXA

Carta do leitor Bernhard Kraus, pároco da paróquia São Bonifácio (São Paulo, SP): ''Que a Xuxa vai ter nenê não é nenhum milagre ou coisa do outro mundo. Ao contrário do que possa parecer, desejo-lhe uma ótima gestação, que curta bastante esse período, e que a Nossa Senhora do Bom Parto lhe acompanhe e lhe dê uma boa hora. Agora, fazer de um fato destes meia página de reportagem e ainda na primeira página não lhe parece exagerado?''

O protesto do leitor resume vários outros enviados à Folha para criticar o destaque dado pelo jornal à recém-anunciada gravidez da apresentadora Xuxa. Algumas dessas manifestações críticas foram publicadas no Painel do Leitor, sem comentários. A notícia da gravidez saiu na segunda-feira passada. A primeira página da Folha estampava um grande quadro na parte superior. ''Xuxa anuncia na TV que está grávida'' era o título, acompanhado de uma foto da apresentadora e do namorado Luciano Szafir no ''Domingão do Faustão'' exibido no dia anterior.

O destaque obedece a uma tendência já antiga no sentido de acompanhar com atenção tudo o que acontece na televisão, mais ainda na TV Globo _especialmente aos domingos. A premissa é que os brasileiros despendem grande parte do seu tempo assistindo televisão, o que é ainda mais verdade nos fins-de-semana. A Folha não poderia ignorar tamanha presença da TV na vida do público.

O argumento é questionável, pois nada assegura que as pessoas só se interessam pelo que sabem e vivem. As edições de segunda-feira da Folha sempre ofereceram oportunidade para que tivessem destaque reportagens mais aprofundadas do que as das edições dos outros dias. Nas segundas, valendo-se do vácuo noticioso dos fins-de-semana, o jornal se permitia destacar temas especiais e arriscar enfoques alternativos.

Era o momento de provocar encontros acidentais de leitores com notícias que, embora relevantes, em geral não teriam condições de vencer a competição com as manchetes quase obrigatórias (os anúncios, os pacotes, as declarações bombásticas) dos outros dias úteis, por assim dizer.

O que provoca agora reações dos leitores não é o abandono da publicação de reportagens especiais das segundas-feiras; é o destaque desmedido e até dominante que o jornal dá à fofoca; é o endosso e a rendição passiva ao jogo mercadológico das celebridades, à novelização do noticiário.

Tanto é assim que, ao longo de todas as edições da semana, a Folha continuou acompanhando mais discretamente, é verdade os desdobramentos do anúncio de Xuxa. Os pais do namorado criticaram o fato de ele ser apresentado à maneira de um objeto, usado apenas como fornecedor dos meios para que Xuxa possa ter um filho. Avaliações críticas e distanciadas foram raridade no cômputo final. Quase nada sobre a influência da atitude de Xuxa sobre o público, especialmente sobre milhões de crianças e jovens que a seguem.

Apenas notícias sobre números de audiência, disputa por mercado e fofoquinhas. No máximo, uma avaliação das estratégias mutantes (mas nem tanto) da TV Globo para cativar o telespectador dominical. Será que, a esta altura, a mídia ainda tem condição de exercer a fundo uma vigilância crítica sobre ela própria?


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