Folha de S. Paulo


O suposto assaltante

''Quando milicianos mal e porcamente armados arriscam sua pele em enfrentamentos com marginais da pior espécie, nas periferias das grandes cidades, ocorrendo morte de algum pária, somos brindados pelos repórteres da Folha com a notícia de que supostos marginais morreram em também supostos tiroteios com a polícia.''

O trecho acima foi extraído de uma mensagem do leitor Beneal Fermino de Brito, delegado de polícia na cidade de São Paulo. O leitor, em defesa da classe a que pertence, aponta falta de isenção da Folha na cobertura das circunstâncias em torno do suposto assalto ao empresário João Paulo Diniz.

O delegado Brito diz que os jornais nem sequer noticiaram os antecedentes policiais/criminais do suposto assaltante morto, classificado simplesmente como assaltante em todos os relatos.
Filho de Abílio Diniz, proprietário da rede de supermercados Pão de Açúcar, João Paulo dirige aquele que é o segundo maior conglomerado do setor no Brasil, com um faturamento de R$ 3 bilhões no ano passado.

No dia 20 de novembro, em confronto com seguranças de João Paulo Diniz, foi morto José Barbosa Ferreira (que a Folha chamou inicialmente de Joelson Ferreira), que supostamente tentava assaltá-lo.

De acordo com testemunhas citadas pela Folha, o empresário foi abordado na esquina das alamedas Santos e Joaquim Eugênio de Lima. Um homem carregando um ramo de flores se aproximou da janela do veículo guiado por Diniz, tentou rendê-lo e ordenou que entregasse o relógio. Diniz estava acompanhado por três seguranças, que viajavam em outro carro e numa moto. Eles reagiram. No tiroteio que se seguiu, segundo relatos de testemunhas citadas pela Folha, o assaltante foi ferido.

Depois, apesar de desarmado, caído e sem ação, o suposto criminoso teria sido morto por um dos seguranças. Assim declarou o pedreiro Adilson Oliveira à Folha: ''O ladrão caiu na rua e jogou a arma para perto da guia. O segurança pegou o revólver do chão e deu três tiros nele''.

Dois dos guarda-costas de João Paulo Diniz foram feridos no tiroteio. Os três seguranças têm ou tiveram vínculos com a Polícia Militar.

O cabo Edson Sini, que estava na moto, é o suposto autor dos três tiros que mataram o suposto assaltante. Sini é subordinado ao Comando de Policiamento de Trânsito.

De acordo com o regulamento disciplinar da Policia Militar, os membros da corporação são proibidos de trabalhar em outras atividades.

No texto que encaminha a mim, o delegado Brito, que dá plantão no 22º Distrito Policial, em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, aponta a existência de dois padrões na cobertura policial da Folha. Quando a fonte das informações é a polícia, o jornal duvida. Mas quando o envolvido é um empresário, o jornal compra a endossa a versão.

A Folha tem por norma, que considero importante instrumento de isenção, fazer um relato frio dos fatos dos quais só tem conhecimento a partir de fonte policial. O jornal procura manter-se distanciado e cético em relação aos relatos oficiais.

O que nas voz das autoridades surge como um ''tiroteio com marginais'' aparece muitas vezes noticiado na Folha como ''suposto tiroteio'' com ''pessoas suspeitas'' dos crimes tal e qual. Isso nos eventos em que não é possível obter confirmação, independente, cruzada e conclusiva, da versão policial.

Um assaltante morto num hipotético confronto com policiais vira ''suposto assaltante'', enquanto o investigação não é encerrada nas instâncias judiciais.

Há um sentido nessa forma de tratamento, que obedece a determinações do ''Novo Manual da Redação'' do jornal, como a do verbete denominado ''acusação criminal''. Diz ele: ''A Constituição garante que todos devem ser considerados inocentes até que sua culpa seja estabelecida pela Justiça. A Folha não endossa acusação criminal, mesmo da polícia, enquanto não for confirmada por sentença judicial definitiva'' (pág. 49).

O mesmo verbete esclarece: ''Essa norma não vale para flagrante delito ou confissão espontânea'', embora até a esse respeito o texto aconselhe cuidado, pois há flagrantes forjados e confissões forçadas.

O objetivo do ''Manual'' é tentar evitar a divulgação de versões incorretas emitidas pela corporação policial a partir de relatos dos próprios agentes envolvidos nos conflitos. O preceito segue a atitude adotada pela Justiça em sua busca pelos fatos.

Ademais, em vários países nem sequer os nomes dos suspeitos de crimes são publicados antes de que o processo tenha a sentença final estabelecida.

Chama a atenção, porém, na cobertura que a Folha fez do caso de João Paulo Diniz, a total ausência do adjetivo ''suposto'' para qualificar o morto. É por isso que o delegado de uma área problemática da periferia de São Paulo reclama.

Também é notável a falta de acompanhamento jornalístico do inquérito que apura os fatos. É um dos nossos vícios jornalísticos mais graves, o de não perseguir a verdade até o final. Investigações periciais, autópsias, número de perfurações de balas, reconstituições, depoimentos, apuração da história de vida do suposto assaltante, nada mais veio a público.

Desde o dia 21 de novembro, ou seja, dois dias depois do confronto da alameda Santos, fez-se silêncio absoluto.

ESQUECIMENTO

Outro caso esquecido pela mídia na fase de investigações policiais é o do assassinato de Elisangela Rodrigues Cardoso, 19, grávida de sete meses. Ela foi assassinada com dois tiros na cabeça no dia 12 de novembro, entre São Bernado do Campo e Diadema. O bebê não sobreviveu.

De acordo com o marido, que estava com ela na hora do crime, dois assaltantes teriam abordado o carro deles num sinal de trânsito, em Diadema (SP), e entrado no banco traseiro.

A um dado momento, quando o marido, na direção, olhou para trás, um tiro foi dado. Um segundo tiro teria sido disparado momentos depois, quando o carro já se encontrava no acostamento da via Anchieta. Em seguida, de acordo com o depoimento do marido de Elisangela, os dois homens teriam fugido a pé.

Com base em declarações de uma testemunha, a polícia vinha investigando outras possibilidades para o crime, quando o fluxo de notícias foi minguando até interromper-se de vez. Troféu ''Pastel de Vento''.

Por sugestão do leitor Carlos Eduardo Martins, economista, do Rio, fica denominado ''Pastel de Vento'' o concurso das notícias irrelevantes mais exageradamente destacadas pela mídia no ano de 97.

Além dos casos aqui relacionados em coluna anterior (Bandido da Luz Vermelha, Dolly, Faustão x Gugu, Vera Fisher, Sérgio Motta, Pathfinder, Ronaldinho, Diana e promessas na área de habitação), o leitor Martins sugere mais um: a celeuma em torno dos lançamentos do livro (''Verdade Tropical'') e do novo CD (''Livro'') de Caetano Veloso.

Martins considera que dificilmente a cobertura para a segunda vinda de Cristo ganharia tanto destaque como o que vem sendo dado a Caetano Veloso na Folha.

Ele protesta: ''Já houve réplica, tréplica e quadréplica. Tem-se a impressão de que nada mais está acontecendo na cultura desse país. Nunca vi um desvario midiático tão grande''.

Para a leitora Ana Moreira de Souza Barreto, um assunto encabeça a lista do troféu: a nudez da sem-terra Débora Rodrigues.

FUTEBOL, PAIXÃO E JORNALISMO

Especialistas esportivos questionam a razão de haver tão pouco interesse pelo Campeonato Brasileiro em São Paulo, refletido no menor comparecimento do público aos estádios paulistas.

Meu palpite é de que isso tem a ver com uma certa frieza da cobertura esportiva nos jornais de São Paulo em comparação com os seus concorrentes cariocas.

Parece haver uma sensibilidade maior para o caráter de espetáculo do futebol, uma relação mais solidária com o leitor no sentido de facilitar sua paixão pelo clube, seu amor pelo astro, seu ódio pelos outros. Há também mais cascata, falsas informações e falsas polêmicas, sensacionalismo.

A imprensa de São Paulo acompanha o espetáculo com frieza distanciada, a emoção contida de quem confere uma nova execução de um quarteto de Brahms.

Esta Folha, com sua tradicional atenção às estatísticas e sua busca por novos enfoques e novos esportes, por sua fuga à rotina constrangedora da vida dos clubes e suas briguinhas, por vezes parece remar contra os interesses e o hábito dos leitores mais apaixonados, ou seja, quase todos os que acompanham futebol.

Talvez a atitude ''olímpica'' da imprensa paulista, à sua moda, termine por contribuir, ainda que modestamente, para o esfriamento da paixão positiva do torcedor pelo futebol. É só uma tese.


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