Folha de S. Paulo


O bem que Caetano faz

Na edição de segunda-feira passada, este jornal demonstrou seu gosto pela polêmica ao publicar uma extensa entrevista com Caetano Veloso. Na entrevista, o artista atacava a cobertura feita pela Folha nos recentes lançamentos do seu livro "Verdade Tropical" e do disco "Livro".

A entrevista era a continuação de um "pingue-pongue" (jargão para a transcrição do diálogo entre repórter e fonte, na forma de perguntas e respostas) publicado dois dias antes, no sábado. Naquela entrevista, limitada a temas culturais, as declarações de Caetano ao jornal pareciam estranhamente curtas para o conteúdo veemente e irritado do que era dito.

As perguntas, provocadoras, questionavam uma suposta indulgência, o bairrismo e o conservadorismo de Caetano ao defender a Bahia e incorporar supostas influências da axé music a seu disco. Indagavam se ele estava ficando mais conservador, se achava que iria aparecer alguém para superá-lo, se havia cansaço criativo.

DONO DA VERDADE

Em relação ao livro (''Verdade Tropicalïï), o tom era semelhante: se Caetano se considera dono da verdade (gastou-se um considerável espaço em torno dessa picuinha), se o livro fecha as portas à imaginação em torno do movimento, e, novamente, se ele é ou não dono da verdade.

Na realidade, as questões pareciam tentar atingir um objetivo: a desautorização de Caetano, de sua integridade. Em retorno, a Folha recebeu respostas agressivas, publicadas no sábado e também na segunda-feira.

O livro de Caetano é um excelente livro. O texto é claro, informativo, detalhista até, constitui depoimento imprescindível para quem deseja entender a cultura brasileira na segunda metade deste século.

É um livro delicado e até contido, está longe de ser expressão de prepotência da parte de seu autor.

TROCO

Se as perguntas parecem ter mais sido destinadas a criar polêmica do que a informar o leitor sobre a obra, é sinal de que o principal objetivo de um meio de informação foi abandonado. Mas a polêmica, no caso, também foi útil, porque a Folha teve o troco.

O jornalismo cultural, especialmente o da Folha, carece das intervenções iradas de gente como Caetano.

Precisa de um enfrentamento franco, para remexer os impasses que vive nesta década _impasses criados até pela ascensão das idéias do artista a uma posição hegemônica.

Para essa ascensão, no terreno do jornalismo cultural, a Folha colaborou, em especial nos primeiros anos da década passada. Foi nesse momento que sua cobertura cultural assumiu agressivamente alguns dos pressupostos existentes na base do ideário tropicalista: a ruptura com o nacionalismo cultural estreito, a abertura para as influências do que existe de melhor na moderna cena pop internacional.

INDEPENDÊNCIA

Sou dos que consideram intervenções críticas de Caetano no terreno jornalístico muito revigoradoras. Ele não procura agradar o interlocutor, enfrenta a mídia em plano de igualdade. É das poucas figuras públicas que têm peso, agilidade e disposição para fazê-lo.

A medida da independência para muitos jornalistas passa pelo ''desmascaramentoïï de algum grande nome que tenha atingido uma certa unanimidade. Na área cultural, o nome óbvio é Caetano, considerado por alguns como um artista decadente, aburguesado e mimado pela mídia.

É uma espécie de reação ao "grande consenso que se formou em torno do autor", na expressão usada pelo editor de Domingo desta Folha, Marcos Augusto Gonçalves, em artigo na edição do Mais! de novembro passado.

A capa daquele suplemento da Folha dedicado ao lançamento do livro já evidenciava seu ânimo pretensamente desmascarador. Diziam os títulos, em tom detetivesco: "O tropicalismo do cárcere ao poder";

"Documentos secretos mostram que o regime militar não diferenciava a tropicália de outras manifestações culturais que agitaram o Brasil nos anos 60".

Essa última referência baseava-se numa reportagem com o general Antonio Bandeira, que em 1968 ocupava posto de comando na estrutura dos organismos de repressão política.

De acordo com o general, segundo apurou o Mais!, os tropicalistas não incomodavam tanto os militares quanto os guerrilheiros envolvidos na luta armada.

O jornal procurava desnudar o que seria um erro na avaliação de Caetano Veloso. Em seu livro, ele diz que acreditava que os tropicalistas seriam os mais profundos inimigos do regime militar.

RELEVÂNCIA

A pergunta é: qual a relevância dessa "revelação descoberta" pela Folha? É a isso que o livro de Caetano se dedica ao longo de suas 524 páginas?

Pela leitura do Mais!, a resposta seria afirmativa, mesmo porque, dentre os vários artigos daquele suplemento, não há nenhum que trate do livro em si, que o descreva, que tente fazer uma análise mais informativa.

Em lugar de esclarecer que, no contexto geral do livro, a afirmação de Caetano é menor, ligeira e até aceitável, o Mais! vai mais longe, na via oposta: associa a trajetória de Caetano à de FHC e de Roberto Campos.

É um exercício de crítica enviesada e confusa, cuja meta é a desqualificação do artista, de seu presente e, por essa via, também de seu passado e de suas motivações.

Por que, por exemplo, a tropicália não é associada a Miguel Arraes ou a Fernando Gabeira? Quer dizer que, além de não ser inimigo profundo da ditadura, Caetano ainda se parece com FHC?

É uma analogia forçada, que não obedece a linhas fortes de coerência, depende mais das intenções dos editores e articulistas. Parece decorrer de uma avaliação prévia e genérica, quase que independe desse livro ou daquele disco.

DESAVENÇAS

As picuinhas atuais com Caetano parecem ser a atualização de uma longa série de desavenças e incompreensões iniciadas justamente com o advento da tropicália. Naquela época, Caetano era criticado pela mídia e ele se insurgia por não aderir ao nacionalismo cívico militante que predominava na MPB, por se abrir ao rock, ao ieieiê e a Roberto Carlos.

Agora, sofre restrições indignadas e desconfiadas da Folha por insistir em manter a sensibilidade aberta a influências da axé music e de gente como Netinho, por exemplo. Naquela época, como agora, transpor determinadas fronteiras culturais implicava riscos de críticas e de isolamento.

O uso da mídia sempre fez parte do projeto tropicalista, como relata o próprio Caetano a respeito da repercussão que o movimento criou ao surgir:

''Enquanto a reação da estudantada de esquerda era francamente desfavorável e muitos colegas compositores torciam o nariz a imprensa, embora criticamente dominada por posição semelhante, tinha no espalhafato das apresentações (e nas próprias discussões que elas geravam) um prato cheio para sua produção diária de reflexão, sensacionalismo e intrigas. Nesse caso, como em outros mais frequentes do que se imagina, era exatamente sua venalidade que a salvava. Pelo menos do moralismo estreito e do tradicionalismo tacanhoïï.

As obras de Caetano devem obviamente ser criticadas pelo que são em si, por suas vantagens e insuficiências, mas sem preconceitos e analogias descabidas. O passado do artista pode ser examinado, por que não?

Para tal, porém, é preciso seriedade na ponderação das informações. Elas devem receber destaque equivalente a sua real importância. Caso contrário, à nossa produção diária de reflexão continuaremos acrescentando doses inaceitáveis de sensacionalismo e intrigas.


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