Folha de S. Paulo


Em nome do público

Apesar de todo o afobamento existente nos últimos dias, ainda é muito cedo para afirmar que os repórteres-fotográficos que teriam perseguido o Mercedes pelas ruas de Paris são culpados ou inocentes no episódio que resultou na morte da princesa Diana.

Estabelecer a culpa num caso como esse demanda rigorosa apuração das circunstâncias. Depende de fatores que ultrapassam nossas simpatias e temores pessoais. Extrapola a defesa do direito a informar sem limites ou a oposição ao sensacionalismo da mídia.

Quase todas as informações ainda precisam ser confirmadas, pois existem ao menos duas versões para cada detalhe relevante.

Importa saber com exatidão a velocidade do carro, a eventual embriaguez do motorista, a perseguição dos motofotógrafos, a influência efetiva destes sobre o desastre, a omissão de socorro possível. Já se sabe, porém, que ocorreu a definitiva "invasão": o sádico registro da agonia e morte da princesa.

Não há por que correr para inocentar ou condenar qualquer envolvido. Faltam informações conclusivas. É preciso apurar mais e melhor. Todos são inocentes inclusive jornalistas da imprensa sensacionalista até decisão judicial em contrário. A dura investigação não pode desaparecer após o "show" do enterro da princesa.

DOIS BARCOS

Tão ou mais importante, porém, é a polêmica sobre as responsabilidade e os vícios de cada veículo de comunicação. No Brasil, mesmo os jornais de qualidade adotaram majoritariamente uma posição defensiva.

Poderiam usar o fato para marcar explicitamente sua diferença com os métodos da imprensa sensacionalista, mas não o fizeram. Preferiram deixar os pés nos dois barcos. Por quê?

Esta Folha, por exemplo, publicou na quarta-feira valiosa entrevista com o historiador marxista inglês Eric Hobsbawn, aquele que é talvez o mais respeitado intelectual vivo. Com toda a sua autoridade, apesar de abraçar ideologia considerada defunta, Hobsbawn fez a seguinte declaração: "Não há dúvida de que a mídia conduziu Diana até a sua morte".

Esse juízo fortíssimo não mereceu destaque em capa, títulos, subtítulos, aberturas. Deu-se mais atenção ao seu diagnóstico sobre o uso que o primeiro-ministro Tony Blair e a monarquia tentavam fazer da morte da princesa. Vale notar que a declaração de Hobsbawn encara a "mídia" como um ente único, sem diferenciações e interesses variados.

CULPAS

Quanto à (precipitada) escolha dos culpados, foram escolhidos responsáveis para todos os gostos, de acordo com cada veículo. Aí vai uma lista parcial:

1) o chofer bêbado - Henri Paul teria batido a 196 km/h o Mercedes 280S que conduzia embriagado, como indicariam as análises de especialistas a partir do índice de álcool no sangue;

2) o público - Este seria culpado indiretamente, por consumir as fotografias e as reportagens sobre a vida íntima de pessoas famosas. Em graus variados, a "mídia" seria como que inocentemente obrigada a incomodar os famosos para saciar a avidez bárbara, tribal, pela telenovela real. Daí o raciocínio, expresso em editorial da Folha, segundo o qual não é possível fazer jornalismo perfeito numa sociedade imperfeita;

3) as celebridades - Essas seriam responsáveis por estimular a curiosidade popular, por usar a "mídia" para se promover, na ânsia de satisfazer vaidades que se nutrem da fama e do dinheiro que sua exposição propicia. Diana, a "professorinha", a "princesinha", seria a mais bem-sucedida delas;

4) Todos - Nessa alternativa, defendida pelo correspondente de "O Estado de S.Paulo" em Paris, Giles Lapouge, a que mais inclui a "mídia", todos parecem participar igualmente da culpa. Mas, como já disse o colunista Janio de Freitas, que eu talvez cite sem ser fiel a suas intenções: "Quando todos são culpados, ninguém é".

O MERCADO MANDA

A diluição dos limites entre imprensa de qualidade e a sensacionalista é uma preocupante tendência do jornalismo contemporâneo. Ela tem razões mercadológicas, culturais, ideológicas e éticas. Onde não existe uma imprensa sensacionalista forte, que exija combate, as concessões ao sensacionalismo talvez sejam mais tranquilas.

Cultua-se um conveniente "mercadismo", segundo o qual a divulgação de notícias obedece a um "laissez-faire" jornalístico. Elas como que ganhariam prioridade e se imporiam espontaneamente, para atender ao interesse irresistível do mercado. A penetração cada vez maior na vida íntima de famosos seria alheia às intenções da mídia de qualidade, que se vê obrigada a saciar esses baixos instintos vindos de fora das redações de maneira passiva, impotente e contrariada.

SERÁ QUE É ASSIM MESMO?

Em primeiro lugar, é errado sair em defesa da "mídia" como um todo, bem como supor que não existam diferenciações. Deve haver veículos que são mais rigorosos, outros que fazem apenas concessões pontuais e outros que aderem perigosamente à bisbilhotice.

Esta própria Folha, bem como outros jornais de qualidade brasileiros, reproduz aqui e ali parte do que é produzido por publicações como "The Sun" e "News of the World". As conceituadas "agências internacionais" divulgam fartamente esse material.

É evidente que a reprodução pontual de material oriundo dos tablóides disseminada por boa parte dos mais respeitáveis veículos da imprensa mundial não se iguala aos tablóides, mas tira-lhes autoridade para criticá-los, para separar o joio do trigo. A própria cobertura do acidente e do velório durante a semana não foi isenta de sensacionalismo.

CORRIDA DO OURO

Como entender um cenário em que é evidente o sucesso comercial de jornais de escândalo, com tiragens de 4 milhões de exemplares ("The Sun"), 2,5 milhões ("Daily Mirror"), enquanto um excelente jornal como "The Independent" luta para manter seus 279 mil exemplares diários? Sem falar do sucesso das revistas de fofocas e dos noticiários "leves" das TVs, sintoma e causa do ambiente cultural.
É só pensar que uma foto de Diana e Dodi al Fayed fez de seu autor um milionário da noite para o dia para imaginar a excitação que pode ter cercado a chegada dos dois a Paris, na escalada de eventos que resultou no acidente.

ÉTICA

Se a mídia não é uma só, o público também não. Congrega parcelas de vários interesses e valores, boa parte deles adquiridos segundo a agenda dos próprios veículos de comunicação, ou seja, dos que o produzem.
O que estou querendo dizer é que os jornais de certa maneira escolhem e são escolhidos pelo seu público.

Aquilo que levam ao público deve corresponder a decisões éticas individuais de cada jornalista e também das corporações profissionais e dos veículos de comunicação. São decisões voluntárias pelas quais cada um deve responder com consciência e liberdade. Não é possível jogar a responsabilidade sobre elas para o "público".

Os interesses predominantes entre os leitores especialmente os que decidem comprar um veículo de qualidade não correspondem aos baixos instintos que lhes têm sido atribuídos, com o objetivo de desculpar uma crescente tolerância ao sensacionalismo jornalístico, que cresce nesta "sociedade imperfeita".

CRUELDADE

O episódio da morte de Diana é um marco do jornalismo de nossos tempos. Levou ao limite os questionamentos a respeito da ética na escolha das notícias e nos métodos de obtenção de informação. Poderia assinalar um ponto de ruptura na perigosa tolerância entre a melhor imprensa e o sensacionalismo. Poderia ser usado para que o jornalismo digno enfatizasse seus princípios, se afastasse da cultura paparazzi.

O argumento mais cruel de todos, porém, é o que atribui a culpa às celebridades. Foi alegado até que quem entra para a família real já sabe o que o espera. Ele indica o grau de brutalidade com que nós jornalistas tomamos as decisões, "em nome do público".


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