Folha de S. Paulo


Bandido da Luz ofusca o Carandiru da Paraíba

"A maneira sensacionalista com que a mídia, de modo geral, vem noticiando o processo de soltura do detento João Acácio Pereira, o 'Bandido da Luz Vermelha', contribui para a folclorização do personagem, que já se transformou num objeto de consumo entre exótico e simpático." Editorial da Folha de 28 de agosto de 1997.

O trecho acima é uma análise lúcida do tom do noticiário que envolveu a libertação de João Acácio Pereira da Costa, 55, o "Bandido da Luz Vermelha", ocorrida na quarta-feira passada.

Esse noticiário transformou-se num episódio que, embora não cause escândalo, contribui para dilapidar a credibilidade da imprensa. João Acácio foi condenado por 88 crimes, entre eles 4 assassinatos, 7 tentativas de homicídio e 77 roubos. Estuprava e matava suas vítimas.

O estudante Walter Bedran foi morto por ele no quintal de casa em 3 de outubro de 1966 _com um tiro na nuca. Tinha 19 anos. O industrial Jean von Christian morreu em assalto na avenida Paulista. Um operário foi assassinado simplesmente porque havia "encarado" João Acácio na porta de um bar.

Na década de 60, já fascinada pelos casos policiais, a mídia adotou o apelido que o consagrou, "Bandido da Luz Vermelha". Virou filme. O personagem ganhou vida própria, de certa forma desligou-se de seus crimes de verdade. Os limites mais largos da ficção predominaram sobre a estreiteza dos fatos e sua incontornável maldade.

DESTAQUE

Diante do que foi o criminoso João Acácio só os monstros se deliciam. Esvaziado de realidade, seu personagem, o "Bandido", tornou-se mais "simpático".

Depois de ser encarcerado por 30 anos, o período máximo de prisão no Brasil, João Acácio foi libertado. Não poderia ser de outra forma, apesar de ele ter sido condenado a um total de 351 anos. A lei tem de ser obedecida acima de tudo.

Sua libertação é fato relevante, deve ser noticiada. Mas havia meios de conciliar dois aspectos que essa cobertura deveria apresentar: destaque adequado para o assunto e distanciamento crítico.

A pior das opções foi a tomada: em geral, apenas o destaque, mas exagerado, num diapasão festivo, equivalente ao que se deu por exemplo aos exilados quando retornaram ao país depois da anistia política.

Noticiaram-se todos os passos de João, que bebida pediu no bar, se deu autógrafo, se deu esmola, qual a sua cor preferida... O repórter policial sensacionalista Gil Gomes e a imprensa de qualidade juntaram-se, no mesmo rebanho, na corte a João Acácio.

Por mais que ela mesma critique esse comportamento, a imprensa parece não ter meios para impedir que o destaque dado a um assunto não implique um elogio ao personagem da notícia e uma estilização do comportamento criminoso.

E AS VÍTIMAS?

Na verdade, a imprensa se exime de sua maior responsabilidade: a que implica determinadas opções entre o que é correto e o que é errado, de acordo com uma escolha consciente e responsável, adequada a um padrão social que se considera mais civilizado.

Para exercer essa responsabilidade, é preciso ter total consciência dos efeitos potenciais existentes no noticiário, especialmente dos que impliquem a criação de modelos de comportamento e de dimensões de tolerância social.

No Brasil, Ronald Biggs, participante de um assalto "sensacional" na Inglaterra, é adotado como uma espécie de modelo de cidadão, objeto de um certo culto por introjetar certa nuance da mentalidade nacional.

Comentando a cobertura em mensagem enviada na sexta-feira passada, o leitor Luiz Eduardo Carvalho pergunta se o jornal, em vez de transformar João Acácio numa celebridade ainda maior (centrando foco no filme e seu sucesso vanguardista, nos irmãos e no restante da família, no problema psicossocial agravado por 30 anos de prisão), não deveria "destacar, detalhar, resgatar a dor dos que sofreram e morreram nas mãos do bandido".

A questão é pertinente, embora tenha o complicador de atualizar o passado, de reavivar crimes cuja pena já foi cumprida, dentro de um complicado jogo em que ao noticiar o jornalista não pode desconhecer todas as repercussões de sua atividade, influenciando a percepção da opinião pública em relação aos comportamentos criminosos.

MASSACRE NA PARAÍBA

Na Folha, parte do espaço gasto com João Acácio poderia ser direcionada para outros temas socialmente mais relevantes. Havia motivos muito maiores para a indignação com o fracasso do sistema de prisões.

Até agora, por exemplo, não obteve destaque adequado no jornal a chacina já admitida oficialmente pelo governador paraibano, José Maranhão praticada por policiais militares ao final da rebelião no presídio do Róger, em João Pessoa (PB), em 29 de julho.

Dos 8 presidiários mortos, 7 foram massacrados com instrumentos de tortura e requintes de perversidade, nas palavras agora afinal emitidas pelo próprio governador. Os presos tiveram fratura de crânio, lesões cerebrais, nos pulmões, no baço e na medula, além de contusões na nuca. Teriam sido fuzilados depois de mortos.

Dois dias depois do fim da rebelião, editorial do "Correio da Paraíba" avaliava dessa forma o ocorrido: "Imperativos da razão, da autoridade e do respeito à integridade física da população legitimaram a oportuna, eficiente e saneadora intervenção policial no episódio do motim".

ESQUECER, NÃO

Na linha do acompanhamento dos casos policiais sugerida pelo leitor Carvalho, recebi há duas semanas mensagem do leitor e crítico da Folha Nelson Ascher, a qual reproduzo:

"O não-acompanhamento das consequências de um crime e de seu eventual processo pelo jornal, creio eu, reforça a impressão de que qualquer transgressão deve necessariamente terminar em pizza, ou seja, trata-se de um endosso implícito disso pelo próprio jornal.

"Há na esquerda muita gente que considera a criminalidade um fenômeno secundário, indigno de atenção diante das grandes coisas por exemplo, a exploração, o imperialismo (lembra o que disse Lênin: 'O que é roubar um banco perto de abrir um banco?'), e muita gente do outro lado do espectro político está à sua maneira, de acordo, isto é, só merecem cobertura coisas como a grande política ou a economia. Mas a principal legitimação do Estado sempre foi a garantia da integridade física e da propriedade de seus cidadãos.

"Ver como estão (ou não) sendo punidos os transgressores é uma forma importante de fiscalizar o Estado. Não o fosse, e isso não seria um 'hit' nas sociedades mais modernas e democráticas.

"Em termos práticos, acho que a Folha poderia ter uma seção semanal ou mensal que levasse um nome como 'A quantas andam...' e que acompanhasse seriamente uns 10/20 casos seletos".

E, mais adiante, Ascher propõe: "Os editores responsáveis deveriam ser mais sensíveis à curiosidade dos leitores, ou seja, mais cartas etc., mais cobertura e por mais tempo. A Folha poderia também, legalmente assessorada, tomar partido de forma mais contundente nesses casos, afirmando que tal ou qual caso mereceria absolvição ou pena mais pesada, sempre justificando o que diz. E, é claro, a coisa não deveria ficar necessariamente restrita ao eixo São Paulo-Rio. Aliás, quando foi a última vez que o jornal falou dos assassinos de Chico Mendes?".

Como se vê, existem alternativas, que implicam uma ação mais afirmativa do jornal. Mas é preciso mudar.


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