Folha de S. Paulo


De volta para o futuro

''O jornalismo terá de fazer frente a uma exigência qualitativa muito superior à do passado, refinando a sua capacidade de selecionar, didatizar e analisar. É recomendável que a gama de assuntos a serem cobertos até mesmo se reduza em alguma medida, desde que em contrapartida sua seleção seja mais pertinente, e o tratamento que receberem, mais compreensivo.

''Uma tal mudança implica repercussões na pauta, na reportagem, no texto, na edição. É preciso maior originalidade na identificação dos temas a serem objeto de apuração, bem como uma focalização mais precisa de sua abordagem.'' Projeto Editorial da Folha, 1997

A Folha apresentou no domingo passado seu novo projeto editorial. É um texto com reflexões sobre a situação atual, o estado do jornalismo e uma manifestação de intenções para o futuro do jornal.

Quando é mais claro, o projeto apresenta importantes definições: a Folha pretende como o trecho acima deixa entender fazer um jornalismo mais profundo, com reportagens melhores e mais explicativas, nas quais a situação em torno do fato seja tão importante quanto seu relato.

Esse processo de sofisticação, segundo o projeto, deve ocorrer em todas as fases de produção do jornal, desde a seleção das reportagens a serem trabalhadas até a edição dos textos, fotos e artes. Atinge também as decisões a respeito dos enfoques a priorizar e a apresentação editorial e gráfica dos temas. O projeto quer um jornalismo mais interpretativo, complexo, desestatizado e humano.

MUNDO COMPLICADO

A Folha, assim, está defendendo um tratamento mais aprofundado dos temas, cuja "gama de assuntos" até mesmo "se reduza em alguma medida" em benefício da sua compreensão e integridade. No papel, o jornal inclina-se por uma linha mais analítica e completa do que aquela que tem sido realizada.

Depois de ampliar seu público com as promoções de distribuição de enciclopédias, dicionários e vídeo, acompanhadas de concessões ao suposto gosto do novo público, a Folha mostra-se preocupada em estar à altura de dar conta das complicações da época. Procura sanar o problema comum a muitos veículos, inclusive estrangeiros em que um jornalismo mais ligeiro, tópico e superficial tem de encarar um mundo em que os temas são cada vez mais complicados e relacionados entre si.

O novo projeto é receptivo em relação às influências da discussão ética palavra que não é usada nenhuma vez no documento sobre a atitude da mídia. Reconhece os problemas que uma atitude agressivamente investigativa trouxe consigo em termos de desgaste de imagem junto à sensibilidade de parcelas relevantes do público, além dos efeitos negativos de afastamento da verdade, desrespeito a direitos, arbitrariedades. O texto mostra-se simpático à nova Lei de Imprensa.

E A ÉTICA?

Essas definições estão apenas esboçadas no texto. A maneira como as apresento aqui talvez decorram, em grande parte da minha própria expectativa diante do diagnóstico muitas vezes genérico e indeciso. A Folha vive uma situação em que há muitos "objetivos a compatibilizar", como diz o texto:

"Como praticar um jornalismo mais interessante (pois há queixas nessa direção) e ao mesmo tempo mais ponderado? Como manter e até ampliar o diapasão de crítica, sem ferir direitos nem utilizar métodos capciosos? Como aprofundar os enfoques sem perder a necessária vivacidade jornalística? Como evitar tanto o conformismo como a crítica pela crítica?"

Não são antagônicos os termos das questões colocadas acima, ao contrário do que sua leitura supõe. Só é possível interessar de fato com um trabalho amparado numa atitude de ponderação e critério. A crítica só é efetiva quando embasada em procedimentos justificados pela legalidade e pela ética, ela só seduz quando incorpora ao tema todos os seus aspectos de fato relevantes, só se justifica quando em defesa de valores que julgamos importante abraçar em nome do interesse coletivo.

A decisão fundamental não é técnica nem mercadológica, mas ética. Infelizmente, o texto não avança nesse tema.

COBRANÇA

O novo projeto da Folha alinha intenções. Como não poderia deixar de ser, é marcado pela subjetividade, tem objetivos que eu não identifico como possam ser aferidos objetivamente por jornalistas, bem como pelos leitores e pela sociedade. Diz mais o que fazer do que o como fazer.

De que maneira é possível avaliar objetivamente se uma publicação traz reportagens melhores, mais profundas, mais seletivas e explicativas? Além disso, que índice usar para medir a qualidade de um jornal, numa época em que vendas em bancas e de assinaturas muitas vezes já não dependem tanto como antes da qualidade do produto jornalístico em si?

No passado, projetos editoriais da Folha enfatizaram o caráter da informação como mercadoria, rompendo com uma visão anterior, considerada mais romântica. Agora, o jornal tenta temperar essa ruptura, recuperando fundamentos que conduzam a um jornalismo tecnicamente mais livre, sério, completo e criativo.

São objetivos que é muito mais fácil expor do que levar à prática. Os leitores têm agora melhores razões para cobrar qualidade e coerência do jornalismo da Folha.

DEFENDENDO PRIVILÉGIOS

O presidente Fernando Henrique Cardoso declarou que concorda com as opiniões de empresas jornalísticas e de associações profissionais de jornalistas, que desejam estabelecer um teto para as indenizações por crimes de imprensa na nova lei em debate na Câmara.

A discussão do tema é enviesada, até porque quem noticia sobre ele tem interesse direto no assunto.

O teto para as indenizações só para crimes de imprensa é inédito em todas as legislações do mundo.

Pioraria a lei existente. Criaria uma categoria privilegiada de cidadãos e empresas (nós), só parcialmente responsável pelos danos que cometer. Nesse caso, o ideal seria estabelecer, também na lei, um "teto" para as ofensas cometidas pela mídia. É um vexame.


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