Folha de S. Paulo


Gravações também podem criar injustiças

Quais são os limites para o uso de informações obtidas por meio de gravações realizadas em segredo? Elas devem ser divulgadas? De que forma? A maneira como foram feitas é relevante para o público? Os interesses dos autores devem ser levados em conta?

Diz-se que o jornalismo de investigação foi o que se desenvolveu mais nos últimos anos no Brasil. Mas talvez repórteres e editores estejam ultrapassando o farol vermelho quando tentam mitigar a sede de notícias. É hora de avaliar um pouco mais e aumentar os controles.

A Folha começou a semana estampando em manchete de primeira página mais um caso de grande repercussão, obtido por meio de gravação: "Deputado que 'vendeu' voto aluga mandato", dizia a manchete.

De acordo com a reportagem, o deputado federal Chicão Brígido (PMDB-AC), licenciado do cargo, estaria cobrando da suplente uma parte do salário dos funcionários do gabinete parlamentar em Brasília.
Para amparar a revelação, que o deputado não nega, mas relativiza, a Folha reproduz trechos de conversas gravadas de Chicão Brígido com a deputada suplente que ocupou seu lugar na Câmara Federal, Adelaide Neri.

SIGILO CONSTITUCIONAL

Também a ex-deputada, em declarações ao jornal, confirma a existência do repasse de parte dos salários de funcionários ao parlamentar licenciado. Este também a estaria pressionando a passar rendimentos que ela recebia na condição de titular do mandato.

A Folha noticiou que as gravações foram realizadas por "um funcionário da Câmara no gabinete então ocupado por Adelaide" e que as fitas foram passadas ao jornal com o compromisso de que a fonte seria mantida em sigilo.

O jornal não esclareceu em que condições as gravações foram realizadas. Não informou se elas foram feitas a partir de telefonemas grampeados, nem se o jornal foi informado previamente da gravação e se participou dos arranjos para que ela fosse feita.

CONFIRMAÇÃO

Nos dias seguintes, o parlamentar confirmou a notícia: ele ficava com parte dos salários dos funcionários, para pagamentos à "militância do partido" e cabos eleitorais. Acusou a suplente de realizar as gravações para impedir que ele reassumisse, para ficar com a vaga dele.

Disse e nisso obteve a concordância de outros membros da Câmara que a prática de drenar recursos de funcionários para o parlamentar e seu grupo político ocorria também em outros gabinetes.

Nos últimos dias, enquanto caminhavam na Câmara processos de cassação do mandato de Chicão Brígido, e também da suplente, o assunto deixava as capas do jornal para ir repousar nos fundos das páginas internas do noticiário político.

Gravações comprometedoras não são acontecimentos novos na vida parlamentar recente de Chicão Brígido.

Em outras fitas reveladas pela Folha em maio, Brígido foi citado pelo ex-deputado Ronivon Santiago (AC) como um dos beneficiários de propina de R$ 200 mil paga pelo governador do Acre, Orleir Cameli, para votar a favor da emenda da reeleição para presidente da República.

Até o fim do mês, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara decide se recomenda a cassação do seu mandato por aquele envolvimento.

INTERESSES

O problema fundamental suscitado tanto por essa como pela gravação feita pelo "Senhor X" diz respeito aos interesses que movem seus autores. Quando questionado a respeito, o secretário de Redação da Folha Josias de Souza defende que, para o jornal, esses interesses são irrelevantes diante da importância pública da notícia.

Eu não concordo inteiramente com o jornalista, responsável por supervisionar as mais importantes reportagens que a Folha publica. Os interesses por trás dos que arquitetam as gravações, acobertados pelo sigilo constitucional da fonte, tendem a ser cada vez mais relevantes, sim.

Se esses interesses são de vingança pessoal, vantagem política ou financeira, buscam mera retaliação ou visam a moralizar o país isso não é desprezível. Existe a hipótese de que sejam mais condenáveis do que as irregularidades trazidas a público. Podem não ser publicáveis, mas o jornal tem que levá-los a detida ponderação.

Para o público é cada vez mais relevante saber se houve ou não participação do jornal na fase de planejamento e execução da gravação. No caso das gravações do deputado Ronivon e outros, o jornalista Fernando Rodrigues descreveu os procedimentos adotados. O jornal agiria bem se fosse mais transparente também no caso do deputado Brígido.

NO SUL

Outra reportagem ancorada em gravações surgiu na edição da Folha de anteontem. Dossiê passado ao jornal pelo engenheiro e denunciante João Batista Veras, do Rio Grande do Sul, contém gravações de conversas telefônicas suas, sob falsa identidade, com empreiteiros do interior daquele Estado. As conversas incluem acertos para supostas fraudes em concorrências públicas da CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações).

]Junto à reportagem principal, a Folha de sexta-feira passada publicou a contestação dos empresários acusados, que se afirmam inocentes. Noticiou também que a auditoria interna da CRT não confirmou nenhuma das irregularidades apontadas.

O acusado Wilmar Cunha, por exemplo, apontado pelo engenheiro como coordenador do esquema de fraudes na região de Passo Fundo, alegou em sua defesa que "deve estar havendo um engano ou a tal conversa telefônica foi falsificada". A reportagem informou ainda que "até o momento não foi feita perícia para aferir sua (das gravações) autenticidade".

ÍNTEGRA

Apesar dessas ponderações, a Folha reproduziu, na forma de íntegra, trechos das fitas em que são atribuídas várias falas incriminadoras a indivíduos que o engenheiro acusa de manipulação das concorrências.
Nessa mesma edição de sexta-feira, o jornal não informou se adotou técnicas especiais para evitar a manipulação da informação e o envolvimento de inocentes. Pode até ter tomado essas providências, mas o leitor não ficou sabendo.

Consultado, o secretário de Redação Josias de Souza defende o procedimento da Folha nesse episódio.

Diz que o jornal recebeu o dossiê pouco mais de uma semana antes da publicação. Enviou a repórter Elvira Lobato ao Rio Grande do Sul para proceder a checagem dos fatos, que constam de inquérito em tramitação na Justiça.

Além disso, a repórter conversou com promotor, denunciante e acusados, podendo se certificar, segundo Souza, que as vozes correspondiam às existentes nas fitas. Ele argumenta em defesa da publicação com base no interesse público da informação. Lembra que o processo corre na Justiça de forma aberta, sem segredo.

Na minha opinião, o método usado foi insuficiente e temerário. O jornal, antes de atribuir procedimentos criminosos a quem quer que seja, deve se certificar com extremo rigor da qualidade da informação de que dispõe. Em casos recentes como os da Escola Base, do bar Bodega e da modelo Cláudia Liz foi essa falta de cuidados que levou boa parte da imprensa a erros irreparáveis.

LIMITES

A Folha deveria ter providenciado uma perícia técnica das gravações, antes de, na forma de íntegra, publicar que "Ávila" disse isso, "Veiga" aquilo e que "Marli" confirmou.

A lei estabelece limites para o uso de gravações em investigações policiais. A mídia deve criar para si algumas regras específicas, que avancem além da definição mais genérica de "interesse público" para balizar seus procedimentos.

Agindo assim evitaria atingir possíveis inocentes, melhoraria a qualidade da informação que divulga e reforçaria sua credibilidade.

CORRIGINDO

Deu na revista norte-americana "Might", em sua edição final, citada por Gina Lubrano, representante dos leitores do "The San Diego Union-Tribune", em memorando da ONO (Organization of News Ombudsmen):

"Correção: há duas edições, numa reportagem sobre o estilo cowboy chic, nós identificamos o Estado de Dakota do Norte como Dakota do Sul, Dakota do Sul como Wyoming, e Wyoming como Kentucky. Na edição passada, pedimos desculpas por esse erro, chamando-o de 'chocante e irresponsável'. Após reconsiderarmos o assunto, chegamos à conclusão de que, na realidade, nós estamos pouco ligando".


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