Folha de S. Paulo


Espreme, sai sangue

'Nos últimos dias, a imprensa tem noticiado o que aparenta ser uma onda de crimes bárbaros. Não parecem casos isolados, ou as tristes e distantes chacinas que acontecem nos bairros pobres da periferia.

Enquanto isso, arrasta-se em Brasília uma precária discussão a respeito de um novo modelo para as polícias brasileiras, cuja desestruturação foi exposta nos recentes movimentos grevistas e insurrecionais ocorridos em diversos Estados.

Veja o que a Folha publicou nos últimos dias:

1) Em 28 de julho, a artista plástica Hermine Toth, 73, foi assassinada a facadas em sua casa no Morumbi, um bairro de moradores de média e alta rendas de São Paulo. Seu corpo foi incendiado. Na orelha direita havia um saca-rolhas. Na esquerda, um espeto de churrasco.

2) Em 22 de julho, um casal de médicos de Santos foi morto por asfixia, supostamente por um empregado e um comparsa. Os corpos de Nêdo Romiti, 67, e Maria Romiti, 72 foram encontrados em um baú, dentro de seu apartamento. A dupla teria amarrado o casal em duas cadeiras e colocado na cabeça dos médicos sacos plásticos, presos com fita adesiva à altura do pescoço.

3) Na madrugada de domingo passado, o cirurgião cardiovascular e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o respeitado médico Milton Jacob Bechara, 38, foi assassinado com um tiro no rosto dentro do seu Vectra em plena rua Prestes Maia, ao lado do clube Monte Líbano, no Ibirapuera, um bairro de classe média alta na zona sudoeste de São Paulo. Segundo testemunhas, um dos passageiros de uma Parati preta teria mandado o médico parar seu carro. Como ele tentou prosseguir, o homem atirou acertando seu rosto.

4) No mesmo dia, o policial militar Marcelo Gualberto Cerbocini foi preso sob a acusação de matar com um tiro no peito o estudante Márcio Paulo Santos, de 16 anos. O policial não teria gostado de uma brincadeira feita pelo adolescente e um grupo de amigos. Segundo testemunhas, o PM estava embriagado no momento do crime.

5) O administrador de empresas Paulo César Dias da Silva, 42, morreu após ser atingido por uma bala perdida durante tiroteio entre policiais militares e supostos assaltantes de carro-forte. A troca de tiros aconteceu na segunda-feira passada, às 9h30, em plena rua Martiniano de Carvalho, na Bela Vista, bairro da região central de São Paulo. De acordo com a polícia, pelos menos 12 tiros foram disparados. No tiroteio, o sargento da PM Gilson Silva, 34, foi atingido por uma bala de espingarda calibre 12 na cabeça. Morreu no hospital.

6) Na quarta-feira passada, a estudante Karina Pereira do Carmo, 17, foi atingida no peito por uma bala perdida na entrada de um supermercado no bairro do Morumbi (zona sudoeste de São Paulo). O tiro que acertou Karina, segundo a polícia, teria saído do revólver do ajudante Reginaldo da Silva, 23. Ele teria trocado tiros com o policial aposentado José Carlos Spina, 52, após assaltar outra estudante em frente ao supermercado. Silva e Spina também foram baleados.

7) Na quinta-feira passada, a Folha publicou que o pintor de carros Gerson Santana da Silva foi preso sob a acusação de ter matado três pessoas no bairro Cidade Dutra, na periferia da zona sul de São Paulo. Entre os mortos estava Ronaldo Constâncio da Silva, de 13 anos. Ele foi morto com um tiro no olho no dia 27 de maio por ter, minutos antes, testemunhado o assassinato do auxiliar de embalagem Vagner Rosa dos Anjos, 24.

ROTINA

Todos os casos citados foram transcritos de reportagens veiculadas pelos cadernos São Paulo/Cotidiano desta Folha. A regularidade dessas publicações cria uma rotina que acaba banalizando a barbárie social em que nos encontramos.

Talvez por causa da crueldade, a fatalidade e a boa condição social de algumas das vítimas, possa existir a impressão de que estamos vivendo uma época mais violenta.

Não. De acordo com números da Prefeitura de São Paulo, 1997 é um ano de estabilização das chamadas mortes violentas. Estabilidade num patamar assustador: no ano passado, 26% de todas as mortes ocorridas entre a população masculina na extrema periferia da cidade foram causadas por violências, ou seja, homicídios e acidentes de trânsito.

Na área mais rica, a parcela das mortes de homens causadas por violência é de 10%, o que está muito longe de ser desprezível. A violência é a principal causa das mortes da população masculina jovem paulistana, superando todas as outras causas.

AMEAÇA

Além da dor da perda para parentes e amigos, essa elevada incidência de mortes de homens em idade produtiva, muitos deles chefes de família, cria um ambiente de ameaça coletiva, além de uma situação social muito grave.

Famílias são desfeitas, muitas perdem sua principal acesso aos meios de sustento. Na periferia, principalmente, jovens abandonados em consequência são quase obrigados a engrossar a criminalidade.

A polícia tem as conhecidas precariedades, e é de se imaginar o trabalho que mesmo uma polícia melhor teria para alterar substancialmente esse quadro de abandono, decorrente em grande parte da injustiça social de um país que tem os piores indicadores de distribuição de renda.

O direito à segurança, para não falar dos outros, é essencial para o exercício da cidadania. A questão da segurança é complexa, envolve áreas tão díspares com a eficiência e a rapidez da Justiça, a capacidade de recuperação das prisões, o sistema educacional, a situação econômica e até os valores prevalecentes em determinada época.

E a Folha? O jornal tem cumprido seu papel de noticiar os crimes. Mas sua atitude, bem como a de toda a imprensa de qualidade, é semelhante à que predomina na sociedade: um misto de descompromisso, de conformismo, impotência, de abordagem parcial e localizada do problema da segurança pública.

SENSACIONALISMO

Sob o lema ''Reage São Paulo'', a Folha já publicou uma bem-sucedida série de reportagens sobre o assunto no ano passado. O problema é a descontinuidade. Só raramente a cobertura dos casos policiais prossegue até o encerramento dos casos e a eventual punição dos culpados. Do mesmo modo, a série da Folha foi passageira.

O tema segurança pública deveria ter atenção e espaço equivalente à importância que o problema tem para o leitor e para a sociedade. A segurança pública é também uma questão de saúde pública, de uso do espaço público, de manutenção e aproveitamento da mão-de-obra já formada, de estabilidade social, de Justiça.

Infelizmente, a noção que a imprensa demonstra ter do problema em sua cobertura regular é ainda limitada e imediatista: o registro do crime, uma continuação no dia seguinte e pouco mais.

Um argumento implícito a justificar essa contenção é o medo do sensacionalismo, do jornal que ''espreme, sai sangue'', como se diz. É uma tese que vê a cobertura policial dissociada de suas causas, que confunde a segurança pública com a realidade dos distritos, do mundo cão. Se a imprensa tratar da segurança pública com a ênfase com que trata da dívida pública, vai inevitavelmente mobilizar energias sociais das quais o beneficiado será o cidadão.


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