Folha de S. Paulo


O desmanche de tudo que era sólido

De que lado está a imprensa, no embate entre as polícias e os governos estaduais? Para onde pende, na disputa entre o governo federal e o que existe de oposição no campo econômico e social?

Nos dois casos, a resposta é que a imprensa alinha-se com as opiniões e, no essencial, com as ações oficiais.

Os veículos de comunicação, não é novidade, apoiam, em suas páginas editoriais, o programa econômico de Fernando Henrique. Com nuances e diferenças de veículo para veículo, a agenda da mídia coincide com a que é ditada pelas ações do governo.

De mãos dadas com as lideranças empresariais, a mídia assume posição legítima, diga-se de cobrança.

Deseja e estimula que as autoridades imponham seu programa de maneira mais rápida, radical. O raciocínio é o de que isso apressará a chegada do dia em que os déficits se estabilizarão, a economia crescerá, o emprego vai voltar. Mas, e enquanto isso não ocorre?

Nos choques recentes entre governos e polícias, a atitude editorial dominante na mídia foi de insatisfação pela falta de energia dos governos no trato com os policiais insurgentes.

Os governadores foram criticados por sua moleza, pela debilidade na repressão às ameaças grevistas, só secundariamente pela gravidade da situação a que chegaram funcionários de serviços essenciais deixados à míngua por mais de dois anos sem reajuste salarial.

Em princípio, não há mesmo por que tolerar ameaças armadas apresentadas à margem da lei, contra governos eleitos democraticamente.

Deve-se, porém, olhar de outro lado a situação, de um ângulo menos considerado nas análises. Não é possível prolongar a asfixia salarial e o exílio social a que estão submetidos certos setores do funcionalismo, transformado em anátema por uma visão objetivamente injusta, atrasada e simplificadora da questão do Estado.

Há setores e pessoas banhados por privilégios, outros chafurdam na ineficiência, desservem ao cidadão e se entregam a interesses que não são os do público. Não há mais sentido que algumas atividades permaneçam nas mãos do Estado, inclusive os bancos e muitas estatais. É preciso, porém, identificar com critério o que é joio e o que é trigo. Isso dá um enorme trabalho, raramente é feito na mídia. É preciso não festejar vender a privatização como inexistente panacéia, pois ela certamente criará seus problemas.

Alguns dos policiais só chegaram a esse grau de radicalidade premidos pelo desespero real, pelo esquecimento excessivo, por uma reação aos privilégios criados por grupos que se beneficiam da posição que atingiram na máquina do governo.

Isso faz ainda mais sentido agora, quando já não se sabe nem mesmo o que achar do Plano Real. Se o consumo de frango cresceu, o de feijão e de arroz baixou. A renda crescente dos mais pobres, trunfo que os mais animados brandiam orgulhosamente, parece ter-se transformado em retorno dolorido à penúria. Os investimentos aumentam, mas ao custo da eliminação de postos de trabalho.

Das notícias sobre o Real, o que continua sendo informação veraz e o que permanece apenas como propaganda oficial? Cabe à imprensa renovar as informações sobre esse plano, dizer, afinal, onde estamos e para onde vamos. É da natureza da mídia desprezar as diferenças, privilegiar um aspecto, impor novidades. Cada jornal só tem uma manchete, cada reportagem, um título, um primeiro parágrafo. Dessa natureza decorrem simplificações, injustiças, insuficiências.

É a hora de lutar contra a natureza, o que pode poupar mais trabalho no futuro.

AUTOCRÍTICOS

Há duas semanas, numa tentativa de aproximar leitores e críticos, oito destes esclareceram seus objetivos, como avaliam o poder de que dispõem. Alguns confessaram ter arrependimentos do que escreveram.
Agora, avançando na tentativa desvendar as idéias dos críticos de artes e espetáculos da Folha, eles respondem a uma pergunta inevitável:

Você acha importante apontar sempre algum aspecto negativo nas obras que examina?

Nelson de Sá, crítico de teatro _ "Bem sinceramente. Eu trabalho com um bloco de anotações, que vou fazendo durante a peça. Dá para notar que eu começo registrando as coisas negativas que, depois, vistas de uma maneira mais integrada, eu consigo situar melhor. Às vezes, eu vou anotando coisas negativas e, no meio do caminho, o espetáculo me vence e mudo tudo. Acho que com o tempo vou conseguir reagir mais equanimemente.

Álvaro Pereira Jr., crítico de música pop de vanguarda do Folhateen _ "Criticar os aspectos negativos não é uma constante no meu trabalho. Mas rejeito radicalmente uma tendência existente dos anos 70 em frente em que havia muita promiscuidade entre artistas e críticos. Não tenho amizade com banda nenhuma. Nunca fui a festa de gravadora. Não conheço nem os divulgadores".

Fernando de Barros e Silva, crítico do TV Folha _ "Tento fazer a ponte entre a TV e o mundo em que ela atua, privilegiando sempre os seus momentos negativos. Sei que às vezes essa ponte é sociológica demais, inespecífica demais, e, nesses casos, peca por parecer artificial e forçada; às vezes, por outro lado, essa ponte é frouxa demais, complacente demais com o programa analisado, o que comprova que estamos todos sujeitos a reproduzir involuntariamente os aspectos menos felizes daquilo de que tratamos".

Marilene Felinto, colunista, crítica de livros _ "Apontar os aspectos negativos é uma questão de honestidade. E não é obrigação, é simples decorrência da natureza da vida e da obra humana, em que os aspectos negativos ganham, de longe, dos positivos".

Inácio Araujo, crítico de cinema _ "Quando você vê um filme, sua obrigação é tentar pelo menos tentar entender o que vê, e não ficar imaginando o que você faria se estivesse no lugar do cara que filmou aquilo. Em suma, a questão não é achar defeitos. Agora, por minha formação fui montador de cinema sou tentado a encontrá-los. Sempre pensava que o montador era o primeiro crítico do filme, o sujeito que está lá para achar defeitos e suprimi-los".

Marcelo Coelho, colunista, membro do Conselho Editorial _ "Não. Uma crítica só elogiosa não me deixa incomodado. Ocorre de às vezes, o texto evoluir espontaneamente, como uma bola de neve, no sentido positivo ou o contrário. Parece difícil surgir algo que se contraponha à força dessa bola de neve. Assim, os textos tendem sempre a ser elogiosos ou críticos em exagero".

Pedro Alexandre Sanches, crítico musical _ "Não me proponho a achar defeitos como obrigação. Mas é verdade que as coisas ruins saltam aos olhos mais facilmente do que as boas. É uma característica que eu tenho, a de olhar os defeitos, mas não é algo que vejo como uma tarefa".

José Geraldo Couto, crítico de livros e de filmes _ "Sim, me sinto na obrigação de apontar aspectos negativos e também positivos. É raro uma crítica em que eu não veja nenhum aspecto positivo. Essa idéia de que o crítico fica procurando defeitos, de certo modo, é verdade. Uma das funções dele é essa também".

Na semana que vem, no encerramento da série, as opiniões dos leitores e uma tentativa de síntese dessa aproximação entre críticos e a sua platéia.


Endereço da página: