Folha de S. Paulo


Isa no centro do horror

Cercado por policiais, o cabo Valério dos Santos Oliveira é socorrido, depois de conflito em BH

"Eu estava do lado do cabo, a centímetros dele. Do lado mesmo. Grudada mesmo. Ele pedia calma à multidão.

"Na hora, eu vi o buraco na cabeça dele, sangrando muito. Eu horrorizei. Se você olhar as imagens da TV, eu estou ao lado dele, de cabelo preto comprido.

"Foi horrível, eu gritando, chorando e fazendo as fotos. Meio trágico... durouuns dez segundos o tiroteio. Ele foi caindo em câmara lenta. Quando acabou de cair, eu fiz a foto e gritei. Nunca tinha visto uma coisa dessas.

"Não sei como consegui fazer essas fotos. Nem eu acredito. Fiquei muito assustada. Estava todo mundo em pânico. Era fogo cruzado.

"Pensei: me abaixo ou faço a foto? Se fico em pé, posso morrer. Mas só faço a foto se ficar em pé. Levantei, não sei por quê.

"Acho que a foto mostra um pouco do que aconteceu. Para a gente que viveu o horror foi muito maior. Eu não acho que a foto seja chocante. Vi tanta coisa mais chocante lá.

"Ela mostra aquele PM que não sabe se se defende ou se atira nem para que lado atira. Porque não se sabia de onde vinham os tiros.

"Fiquei chateada de a fita da TV trazer só os meus gritos. Ainda não entendo como posso ter gritado tanto e ter feito aquelas fotos. Acho que passei um minuto batendo aquelas fotos. Depois, o que me impressionou foi o choro dos PMs.

"Eu mais ou menos esperava que aquilo fosse acontecer. Antes, ali na praça da Liberdade, senti um clima estranho. Já tinha feito fotos da manifestação, talvez voltasse para a Redação.

"Mas vi aquele monte de gente cercando o palácio. Pensei: se a multidão avança, vai romper o cordão e invadir. Comecei a seguir a manifestação até a porta do prédio. Iam entrar, invadir, pisotear, matar, ia morrer mais gente. Veio o tiroteio, depois o pânico e a tensão foi diminuindo.

"Essa noite (de quinta para sexta-feira) eu não dormi direito. Dava pulos na cama. Acordava assustada. Aí, tomava um café, fumava e tentava dormir de novo. Não almocei. Estou com muita dor no corpo.

"Hoje eu estava pensando, porque acho que fez efeito hoje. Acho que eu não tremi porque eu gritei e chorei muito. Chorando, você não consegue ver direito a imagem que está enquadrada.

"Aqui (no jornal), você primeiro tem que fazer a foto, depois o resto. Um dia, achei que tinha perdido o celular do jornal e meu chefe reagiu: não perdendo a foto, pode perder qualquer coisa."

A narrativa acima é da repórter-fotográfica Isa Nigri, 41, 3 filhos, autora da foto do cabo Valério dos Santos Oliveira, veiculada nas capas da Folha, de "O Globo" e do "Jornal do Brasil" de quarta-feira passada. A foto foi considerada "chocante" por alguns leitores da Folha.

Uma leitora enviou mensagem via Internet às 7h55 do dia da publicação. Ela reconhecia a relevância do fato, mas dizia que não conseguira ver o jornal no café da manhã por causa da imagem, rejeitando-a como "foto para a Primeira Página em uma Folha de S.Paulo".

Outros leitores classificaram a publicação do instantâneo como sanguinário e sensacionalista. Não houve apoios, como seria de se supor num caso desses.

A repórter-fotográfica Isa Nigri está em "O Tempo", de Belo Horizonte, desde que o jornal começou a circular, há cerca de um ano. Tem três filhos, de 21, 19 e 16 anos. É judia. Antes de fazer fotojornalismo, a fotografia era um hobby para ela. Teve fábrica de móveis, confecção, viajou.

Diz: "Primeiro ganhei a vida, conquistei uma certa estabilidade, agora resolvi fazer o que gosto".

Até hoje, a maior dificuldade que tivera no trabalho fora a perda da foto de uma visita do ex-presidente Itamar Franco à capital mineira. Depois de "fazer" as fotos de Itamar, já de volta à Redação, percebeu que tinha se esquecido de colocar filme na máquina.

A foto de Isa constitui um dos grandes momentos do fotojornalismo deste ano. Sua publicação envolve consideração ética, a de arriscar expor assunto desagradável e doloroso, em sua crueza, aos leitores.

Há questão ética também na outra ponta, a da recepção da informação. O jornal parece convidar impor que o leitor admita a entrada do drama excruciante em sua existência, mesmo que a contragosto, correndo o risco de estragar-lhe o dia.

Boa parte do ofício de informar no Brasil implica trazer a público os efeitos da surda guerra civil que a todo momento explode de formas diferentes.

Não cabe à imprensa amenizar ou se distanciar dessa situação, por mais que seu aspecto sensacional, atemorizador, sanguinário cause repugna.


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