Folha de S. Paulo


Mistério em Pedro Canário

Na pequena Pedro Canário, no norte do Espírito Santo, um júri de sete pessoas tomou decisão que surpreendeu toda a imprensa e teve repercussão internacional. O líder sem-terra José Rainha Jr. foi condenado a 26 anos e seis meses de prisão pelo assassinato de duas pessoas um fazendeiro e um policial em julgamento sobre o qual ficaram graves suspeitas.

As informações de que o cidadão afastado das paixões políticas precisava dispor, ele não teve. No lugar, os jornais encheram-se de meias-verdades, suspeições mais ou menos veladas, sem nenhum depoimento autêntico de fonte confiável.

O país não sabe até agora se o veredicto de Pedro Canário foi obra de conspiração de ricos fazendeiros contra miseráveis sem-terra e seu inocente líder, ou se, ao contrário, os jurados dispunham de elementos suficientes para chegar a um veredicto dentro da normalidade.

Essa situação dúbia é resultado da falta de preparação e da desatenção dos órgãos de imprensa, esta Folha incluída. Tivesse o jornal dedicado ao caso a décima parte dos recursos que empenhou na organização da cobertura do julgamento do caso de Daniella Perez, o resultado seria de outra qualidade.

VOLTA AO PASSADO

A leitura do noticiário da Folha não contestado pelo de outros jornais dá a impressão de que assistimos a uma volta ao passado, a um julgamento digno dos tempos da ditadura.

A maioria do júri não deu ouvidos a quatro depoimentos de três parlamentares e um coronel da PM que confirmavam de viva voz o álibi de que Rainha, em 5 de junho de 89, estaria no Ceará, a mais de 1.500 km de distância do local do crime.

Os julgadores preferiram crer em outros testemunhos, de pessoas ausentes, registrados apenas nos autos, sem oportunidade de interrogatórios cruzados pela defesa e promotoria.

O principal desses depoimentos seria o de um caminhoneiro chamado Zé Coco, que se teria recusado a depor no tribunal por temer pela sua segurança, depois de receber ameaças. Nos autos, ele descreve um Zé Rainha de feições diferentes. Não se sabe o que mais ele falou.

Em linhas gerais, o julgamento deu-se assim: a defesa usou o depoimento dos presentes, devidamente registrado pela imprensa. A acusação valeu-se do que estava escrito e descrito nos autos, elementos quase totalmente ignorados pelos jornalistas, embora não pela maioria dos jurados.

PRIORIDADES

E o que dizem os autos? A única repórter de texto enviada pela Folha a Pedro Canário, Fernanda da Escóssia, da Sucursal do Rio, chegou à cidade apenas na véspera do julgamento.

Sua atenção logo estava dividida entre a escolha e impugnação de jurados, ritmo do julgamento, registro da marcha dos sem-terra em direção à cidade e presença de Lula e outras personalidades na cena.

Com essas múltiplas prioridades, é óbvio que uma só jornalista não teria condições de tomar conhecimento, mesmo que geral, das 1.181 páginas dos autos do processo.

Estudar os autos é tarefa essencial de quem cobre qualquer julgamento. Sem saber o que vai neles, o jornalista depende das versões e interpretações de advogados e promotores. Só que essa é uma tarefa tão essencial quanto negligenciada na cobertura jurídica, por razões culturais e estruturais, ligadas também à escassez de recursos.

A dependência de fontes interessadas, tão maléfica à pureza da informação, aconteceu em Pedro Canário?

É verdade que os autos foram lidos no tribunal, como é comum nos julgamentos, mas boa parte dessa leitura foi perdida pela repórter da Folha, que, naturalmente, na noite de terça-feira, se ocupava em redigir e enviar seu texto para a Redação em São Paulo. O mesmo deve ter ocorrido com outros profissionais. Era preciso relatar o julgamento até ali, a presença de Lula, a marcha dos sem-terra etc. O conteúdo deles permanece um mistério.

Ou existe algo de muito grave nos autos, que ainda não foi revelado, ou o julgamento foi uma espécie de farsa.

Falando a respeito, Fernanda da Escóssia declara que gostaria de ter feito uma prospecção muito mais detalhada do ambiente na cidade, antes do julgamento, para aferir possíveis influências sobre os jurados.

Destes, sabe-se tão pouco como de outras informações fundamentais: onde está a arma do crime, por exemplo? Como o desaparecido Zé Coco explica a contradição existente entre o Rainha que descreveu e o Rainha que todos conhecem? Houve outras testemunhas do crime? O que viram?

SEGUNDO TEMPO

O secretário de Redação da Folha Josias de Souza trata a cobertura como um caso recente, ainda em andamento, de grande complexidade, em que se procura manter a objetividade, a despeito de todos os interesses de ordem política que possam influenciar as informações: ''Nos interessa colocar à disposição do leitor elementos suficientes para que ele possa chegar à sua própria conclusão sobre o crime e o julgamento''.

Rainha vai a outro júri ainda neste ano, o que dá oportunidade e tempo para que a imprensa desvende os detalhes misteriosos que cercam o crime e também o veredicto de Pedro Canário.

Se o júri errou, é grave. Se tinha razões especiais e secretas para errar, aí estamos diante de um escândalo.

Cabe à imprensa, por meio de uma apuração extensa e detalhada de todos os fatos, contar a história desses crimes e tranquilizar ou justificar os piores temores em torno deles e de suas consequências. O jogo tem segundo tempo. Por enquanto, estamos perdendo.

EM TEMPO

Referência aqui feita na semana passada, sobre a exclusividade da denúncia de Paulo de Tarso Venceslau pertencer ao ''Diário do Povo'', de Campinas, suscitou manifestação do autor da longa entrevista publicada no ''Jornal da Tarde'', com tanta repercussão. Luiz Maklouf Carvalho não sabia da veiculação anterior no jornal campineiro. Além disso, acha que, pelas consequências que trouxe, o furo de fato foi dado pelo ''JT''. Na semana passada, o próprio ''JT'' atribuiu a publicação da primeira denúncia ao ''Diário do Povo''.


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