Folha de S. Paulo


Terror na favela e timidez na Redação

"Tive uma grande dificuldade: explicar a meu filho que o que ele viu era real, e que a polícia é bandida e que ele não pode confiar nela. Aí ele me perguntou: 'Mas a polícia não prende bandido?' Eu respondi: 'Era para ser assim, mas, neste caso, os que estão apanhando são bons e a polícia não'. Saiu da sala balançando a cabeça como que pensando: 'Não entendi nada'".
Fernando Hercos Valicente, leitor

Para além da indignação decorrente do terror policial na favela Naval, em Diadema, leitores da Folha sentiram-se decepcionados porque seu jornal não publicou a notícia no dia seguinte.

Para leitores de fora da Grande São Paulo, a Folha de terça-feira passada não trouxe informação sobre o vídeo que mostrava bloqueios feitos por uma quadrilha de policiais militares para extorquir, agredir, torturar e até matar pessoas na favela Naval em Diadema, na periferia da cidade mais rica do país.

A reação de alguns leitores mostrava perplexidade, como quem se sente abandonado por um jornal que chegou ao que é por nunca se ausentar na hora da revolta frente à grave situação social brasileira.

DISTANTE

Silvia de Souza, de Goiânia, enviou mensagem para dizer que ficou mais chocada em ver, "não as cenas de violência, mas a falta delas na Primeira Página da Folha". E prosseguiu com um desabafo:
"Esse jornal é semanal ou mensal, para estar tão distante da indignação do dia anterior?"

O jornal soube do fato pelo noticiário da Rede Globo, como informa a secretária de Redação Eleonora de Lucena. Diz a jornalista que a edição nacional da Folha é concluída na Redação às 20h, não tendo havido assim tempo hábil para a inclusão da notícia naquela edição. Mesmo regiões relativamente vizinhas à capital de São Paulo, como Campinas, não receberam a informação na Folha. João Castanheira Filho, morador daquela cidade, teve que comprar um jornal local para ler a respeito do assunto. Ele reclama e cobra: "Agora, como compensação, minha expectativa é que coloquem todo o peso dessa instituição para que fatos como esse não aconteçam mais no futuro e que eu não volte nunca mais a sentir vergonha e indignação de ser brasileiro".

OPERAÇÃO INDUSTRIAL

A secretária de Redação explica que o jornal iniciou ainda durante o "Jornal Nacional" o trabalho de apuração da informação, só tendo atingido um acúmulo de informações satisfatório quando a rodagem da edição Nacional estava muito adiantada, próximo ao fechamento da edição São Paulo/DF, concluída às 23h.

A rodagem da edição Nacional da Folha é uma operação industrial complexa, especialmente depois que o jornal incorporou mais cores a um número maior de páginas. A distribuição dos exemplares também. A Folha transporta grande parte da edição nacional em caminhões que se dirigem durante a noite para cidades de importante distribuição do jornal, como Rio, Belo Horizonte, Curitiba e os importantes centros do interior do Estado.

Segundo Eleonora de Lucena, qualquer atraso na conclusão acarreta graves atrasos na chegada do jornal à casa dos assinantes e às bancas. Em alguns casos, o atraso é tal que inviabiliza seu uso matinal pelos leitores, que saem para trabalhar ou se engajam em outras atividades.

MELHORIA

Ainda de acordo com a jornalista, uma das prioridades para o ano de 1997 é incrementar a qualidade da edição Nacional da Folha. "Assim, o jornal realiza, em praticamente todos os dias, várias trocas de reportagens, de páginas inteiras, inclusive da Primeira Página, no sentido de atualizar a edição Nacional. Essa troca só não foi feita naquela edição específica em virtude de a informação relativa à violência dos PMs em Diadema ainda estar sendo apurada e checada, enquanto a edição era rodada."

Infelizmente, porém, não foram só os leitores da edição Nacional que reclamaram. Mesmo os moradores da capital de São Paulo, que receberam o jornal fechado a partir de 23h, com a notícia de Diadema, tiveram argumentos para expressar insatisfação quanto ao pouco destaque dado ao fato:

"Parece que a Folha 'comeu barriga' ao não dar a devida importância aos massacres e assassinato de Diadema...Este fato está sendo mostrado em todas TVs do mundo. Será que vocês do jornal não se indignaram o suficiente?" _era a pergunta do leitor Roberto Ribeiro, morador da capital de São Paulo, no mesmo dia.

INSOSSA

Outro leitor, José Carlos Crozera, detalhava a crítica, como a passar um sabão na Primeira Página do jornal: "A Folha me sai sem fotos e com um título pra lá de insosso". Título da Folha: "Dez PMs são acusados de assassinato", em quatro colunas, abaixo da dobra. Foto principal da capa: mulheres da Albânia chorando.

Mais outro leitor, Corival Sobrinho, de Brasília (recebe a edição São Paulo), criticava o pequeno destaque alegando que "é fundamental que se faça uma ampla divulgação do fato para pressionar o Estado a punir exemplarmente os policiais desviantes". De São José do Rio Preto (SP), Romildo Sant'Anna discutia valores, em mensagem enviada já na quarta-feira, dia 3: "Não é cotidiano o que de barbaridade aconteceu em Diadema!

Virar as costas a essa desgraça estarrecedora, ou dar-lhe importância secundária é conformar-se demais com o desumano. A timidez da Folha, parece, é uma questão de ética jornalística...E a ética social à qual, e acima de tudo, esse jornal sempre esteve comprometido?"

AVALIAÇÃO

A secretária de Redação Eleonora de Lucena declara que, com a perspectiva de hoje, o jornal deveria ter dado manchete ao assunto na edição que fechou depois de 23h. Informa que, entre a veiculação do vídeo pelo "Jornal Nacional" e o fechamento da edição São Paulo da Folha, não houve uma avaliação exaustiva da relevância de se elevar o tema à manchete.

Após consultas, a manchete da Folha é decidida diariamente pela Direção de Redação e a Secretaria de Redação. Naquela noite, o título principal da capa, em ambas as edições permaneceu inalterado:
"Convocação de bancos divide CPI". Lucena informa ainda que o fato de o furo ter sido dado pelo "JN" não influenciou na decisão.

Há notícias que mexem com um país e transbordam para o mundo. Ter sensibilidade para elas é fundamental para consolidar a relevância de um veículo junto a seu público e à comunidade.

A Folha, que não faz muito teve coragem e causou polêmica ao estampar uma sequência de fotos na capa mostrando um policial militar maltratando um menino de rua não poderia ter deixado de romper a rotina e correr seus próprios riscos diante de fato tão mais grave.


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