Folha de S. Paulo


A polêmica do ácido

A mídia espelha a vida real, preferentemente do ponto de vista corretivo. Notícias negativas, como se vê na cobertura da CPI dos Títulos Públicos, não precisam ser eleitas pelos meios de comunicação para ganhar as manchetes. Elas simplesmente se impõem a eles.

Nesses momentos, a imprensa olha a realidade de uma posição moral, da defesa da correção, honestidade e transparência. É uma situação em que, de forma implícita, a mídia se põe ao lado da sociedade. Do lado de lá estão os suspeitos, desonestos, formadores de quadrilha, infiéis, escória.

Há outras situações em que os meios de comunicação, no gozo da liberdade de que desfrutam, assumem atitude oposta, dão curso ao que o senso comum classifica como negativo, vicioso.

Em meio aos preparativos para o feriado da Semana Santa, dois leitores, ambos pais, ambos de meia idade, ligaram ao ombudsman para manifestar sua preocupação com o conteúdo de uma tirinha que é publicada diariamente na Ilustrada: "Big Bang Bang", de autoria do gaúcho Adão Iturrusgarai, 33.

APREENSÃO

"Big Bang Bang", para quem não conhece, é uma tirinha em que a personagem principal, Aline, é uma jovem que tem "piercing" no umbigo, namora e vai para a cama com dois rapazes (Oto e Pedro) e tem experiências com LSD.

O primeiro dos leitores a ligar, José Aguinaldo Souza, da cidade de Campinas, disse estar apreensivo: '''Big Bang Bang' está, desde o dia 17 de março, praticamente ensinando os leitores a usar LSD. Tenho crianças em casa, elas lêem tirinhas direto e isso me deixa preocupado, pois a história pode estar induzindo-os ao consumo de drogas''.

Luiz Antonio Alves de Lima também se questionava sobre o efeito que a tirinha poderia ter sobre seus dois filhos aos quais ele tenta dar uma educação que concilie liberdade e proteção.

APELO

Os leitores procuravam explicitar que sua posição não era moralista e conservadora, mas uma preocupação real diante de algo que os incomodava, que consideravam grave, inclusive pelo tom banal e divertido que o consumo de LSD assume na tirinha. Quase faziam um apelo para que a história não prosseguisse nessa linha, ou que não se agravasse ainda mais.

O assunto não é propriamente novo numa seção de quadrinhos que tem Glauco e seu "Geraldão" (personagem de pênis ereto e com seringas por todos os lados do corpo) ou Angeli e seus "Rê Bordosa" e "Woodstock".

Fazer piadas sobre drogados (antigamente eram os bêbados) não chega a ser novidade no humor.

A questão é saber se há uma relação causal entre o tratamento levemente divertido em alguns momentos, até crítico que o consumo de LSD tem na tirinha e o efetivo consumo dessa ou outras drogas pelos leitores.

"ENTENDO A PREOCUPAÇÃO"

O autor da história sai em sua defesa: "Não faço a apologia das drogas, não quero induzir ninguém a nada", diz Iturrusgarai, que é casado e não tem filhos.

"Não acho que o mundo das drogas seja bonito. É uma história pela qual eu já passei, em que tive experiências boas e ruins. Entendo a preocupação de alguns pais em relação a seus filhos, mas não é por minha causa que alguém vai usar drogas ou deixar de usá-las. Só não gostaria de esconder a existência desse mundo", declara.

"Fico muito mais preocupado com os males causados por um enorme outdoor colorido de cigarros. Acho que o meio em que cada um vive é que pode acabar influenciando no sentido de uma busca em relação às drogas", acrescenta o autor.

A FOLHA

As tirinhas nunca sofreram qualquer tipo de corte na Redação da Folha. O editor da Ilustrada, Sérgio Dávila, 31, em geral as aprova. Quando tem dúvidas, o que é raro, consulta a secretária de Redação Eleonora de Lucena.

A única vez em que houve alguma mudança foi quando se pediu para trocar uma outra palavra por "masturbação". O autor aceitou.

Dávila diz que o quadro "não vem ensinando os leitores a usar LSD, mas sim narrando de forma cômica o dia-a-dia de supostos usuários de LSD". Esclarece que a tirinha não ensina onde comprar a droga ou mesmo fabricá-la.

Nosso sistema político está baseado na mais ampla democracia. A Constituição proíbe a censura e assegura amplo direito de expressão artística.

A Folha tem testado essa liberdade, ampliado seus limites, auxiliando, em vários episódios, a disseminar a crença geral em sua importância.

ÉTICA

Deve-se levar em conta, porém, que estudos sobre reações dos leitores apontam no sentido de que crianças são público especialmente vulnerável e suscetível a influências vindas do que assistem e do que lêem.

Trata-se, mais uma vez, de escolher, sob a orientação de uma ética que aconselhe o que se deve ou não fazer, segundo o que achamos correto por nossas convicções e pelo conhecimento que as pesquisas nos dão a respeito do assunto. Sob essa lógica, o melhor é evitar o tema.

Poderíamos entender as tirinhas como um subproduto inevitável da democracia, até defendê-las como prova de que o sistema resiste.

Escolha não é censura, embora os padrões sobre o que é nocivo sejam relativos. Adão Iturrusgarai diz que não quis tomar partido, assumir um lado positivo. Afinal, ele tem razão em relação à aceitação social das propagandas de cigarros, que induzem a vício comprovadamente letal, nessa lógica das letalidades comparativas.


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