Folha de S. Paulo


Sem perguntas e sob aplausos

Na sexta-feira de manhã, enquanto o Comitê Olímpico Internacional anunciava que o Rio estava excluído da disputa para sede dos Jogos de 2004, o noticiário ufanista da imprensa brasileira daquele mesmo dia gritava nas bancas, em embaraçoso choque com os fatos.

''Rio é aplaudido em teste para 2004'', dizia a capa da Folha, referindo-se à apresentação da comissão brasileira que fora defender o Rio na reunião da véspera com o COI. ''Apresentação da delegação brasileira termina sem perguntas e sob aplausos'', anunciava a primeira página de ''O Globo''. ''Brasileiros crêem que Rio será finalista'', informava ''O Estado de S.Paulo''. O mais estridente era o ''Jornal do Brasil'': ''COI aplaude de pé discurso de Pelé a favor da Rio-2004''.

Tudo verdade, sim, mas meia-verdade, a metade menos importante dela. Em torno da escolha do COI criou-se uma situação que afeta o jornalismo no Brasil com uma certa regularidade. A imprensa rendeu-se à mobilização popular, comoveu-se com as demonstrações de apreço dos moradores pela sua cidade.

Quando a massa desceu o morro e veio à beira das favelas cariocas saudar a delegação do COI encarregada de fiscalizar a cidade ficou mais difícil fazer jornalismo. O país imagine o Rio animou-se com os agrados aos visitantes . O presidente Fernando Henrique se engajou. Políticos e administradores logo perceberam as energias potenciais que aquela situação poderia colocar em movimento. O assunto politizou-se.

Nesse ambiente o jornalismo brasileiro foi chamado a cumprir seu papel. Como se viu, de maneira geral, o desempenho dos jornais, mais uma vez capitaneados pela cobertura ufanista das televisões, foi um fracasso.

A Folha foi das primeiras a embarcar na maré. Já em 12 de janeiro passado, na capa do jornal de domingo, anunciava: ''Rio-2004 deve ficar entre as finalistas''. O título interno era mais preciso: ''Rio é a segunda melhor na avaliação do COI''.

O texto afirmava que os avaliadores do COI se comoveram com a paisagem da cidade e com a capacidade de mobilização popular. Renasceram mitos do tipo ''a cidade mais simpática'' ou apelos sérios como a missão de ''resgate social'' a legitimar as Olimpíadas cariocas.

É verdade que depois desse deslize houve um esforço de distanciamento e análise objetiva dos dados. Mas o resultado foi contraditório, oscilando de um extremo a outro.

O editor de Esporte, Melchiades Filho, declara que à medida que se aproximava o momento da decisão pelo COI, a Folha ''concentrou-se em noticiar os relatórios técnicos da entidade, fugindo ao clima de oba-oba, mesmo sob o risco de criarmos uma certa antipatia''.

Melchiades chama a atenção para os quadros comparativos publicados, nos quais a infra-estrutura do Rio era sistematicamente comparada à de outras cidades, sendo sempre derrotada. Esses mesmos quadros consistentemente deixavam de incluir o Rio entre as cidade consideradas ''favoritas''.

O editor assinala a dificuldade da cobertura, uma vez que muitas das fontes tradicionais de informação, agências de notícias e jornais dos países envolvidos, poderiam estar influenciados pela sua própria preferência por esta ou daquela cidade.

Nessa cobertura, o jornal chegou a ter que publicar um ''Erramos'' importante. No dia 21 de fevereiro, texto na capa da Folha afirmava que o COI divulgara um comunicado considerando que Buenos Aires tinha causado melhor impressão que o Rio.

Comunicado do COI com esse teor simplesmente nunca existiu. Tratava-se de uma ilação, com base em relatório que apontava prós e contras de cada cidade examinada. Os organizadores dos Jogos no Rio protestaram junto ao ombudsman e tiveram uma carta retificadora publicada no Painel do Leitor.

Fazer jornalismo é difícil _frequentemente, antipático e perigoso. Manter a isenção pode implicar muitas semanas de antipatia. Quando a verdade se impõe, o jornalista ainda pode ficar com fama de estraga-prazeres.

Nem sempre o valor dessa atitude se evidencia imediatamente. É no longo prazo que a união de boa técnica e valores sólidos pode realçar a importância da imprensa junto à sociedade.


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