Folha de S. Paulo


Clonar ou não clonar, eis a questão

A notícia de que pesquisadores de uma empresa da Escócia conseguiram realizar a clonagem completa de uma ovelha a partir de uma de suas células deu vazão a muitas especulações na mídia de todo o mundo e no Brasil.

Segundo os criadores de Dolly, a mesma técnica de manipulação genética poderia teoricamente ser usada para engendrar um clone de ser humano.

Fóruns de debate discutem o assunto na Internet. Jornais realizam pesquisas para saber que pessoa famosa deveria ser clonada ou não. A Casa Branca proibiu, o Vaticano condenou.

A foto de Dolly expõe a todos o fato consumado de que um ser idêntico a outro foi criado tecnicamente, sem uso de óvulo ou espermatozóide, e de que isso poderia ser da mesma forma aplicado ao homem.

O imaginário em torno do tema excitou-se, expondo suas origens no terror e na ficção científica. A menção à possibilidade de que o homem adquirira poderes na esfera até agora reservada ao divino abre possibilidades ilimitadas.

Observada pelos seus desdobramentos simbólicos, teológicos e éticos, só a manchete do jornal estaria à altura da importância de seu anúncio. Observada no campo genético, talvez nem representasse uma grande novidade, sendo apenas o surgimento de uma outra técnica para fazer o que a manipulação genética já faz, por exemplo, no terreno agropecuário.

Na Folha, o tema foi tratado com destaque intermediário: mereceu títulos e textos na Primeira Página desde terça-feira, dia seguinte ao anúncio, até sexta-feira.

De forma didática, a técnica da clonagem foi explicada nas reportagens internas. Editorial pediu discussão ética sobre o que é aceitável no terreno da nova técnica.

Em geral, as grandes descobertas da ciência demoram a ser reconhecidas pela própria comunidade científica.

Para os meios de comunicação de massa, então, a avaliação do valor científico e das repercussões de uma descoberta é mais difícil ainda.

Vive-se uma época em que a mídia é assediada por anúncios diários de novos progressos, alguns cercados de grande estardalhaço inicial.

Experimentos e pesquisadores da fusão fria, por exemplo, prometiam milagres no campo da geração de energia. Receberam verbas e foram encarados com otimismo equivalente aos espaços que tiveram nos meios de comunicação de massa. Fracassaram, saíram rapidamente de cena, deixando um cheiro de fraude no ar.

A questão trazida pela ovelha da Escócia é de outra natureza, embora as ações da empresa que anunciou o experimento tenham dado um salto nas bolsas de valores. Ela não foi recebida com otimismo, mas antes como a prova da iminente decadência da espécie humana, incapaz de refrear seus instintos diante das mórbidas possibilidades colocadas à sua disposição pela ciência.

Havia, assim, dois tipos de problemas a serem respondidos
pelo noticiário e que não o foram com a clareza necessária. Primeiro: clonar para quê? Segundo: a existência da possibilidade de criação da cópia humana implica que ela será necessariamente usada sem limitações?

São questões tanto científicas como éticas. Dizem respeito também, no limite, à existência ou não de valores que limitem a aplicação das novas técnicas. São perguntas que devem e precisam ser ainda colocadas em perspectiva junto ao noticiário, tanto por cientistas como por filósofos e pensadores. Por enquanto, ainda tentamos, até por meio de piadas, dimensionar a importância da notícia.


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