Folha de S. Paulo


Nada a festejar

A brasileira Lamia Maruf Hassan foi libertada pelas autoridades israelenses após cumprir 11 anos de prisão. Chegou ao Brasil na quinta-feira, na crista de uma onda de euforia por parte de quase todos os veículos de comunicação.

Sua recepção no aeroporto de Cumbica teve cenas de jornalismo de rebanho, com repórteres se atropelando, faixas de apoio, bandeiras, festa e cantoria. Parecia a chegada de uma estrela do rock, jogador de futebol ou
piloto de Fórmula 1.

Antes de ser anistiada, a brasileira cumpria pena de prisão perpétua em Israel por ter atuado como mais do que só uma ''laranja'' no sequestro de um soldado israelense, que acabou assassinado. Ela usou seu passaporte brasileiro para conseguir alugar o automóvel usado no sequestro, ocorrido em 1984, em território israelense.

A vítima, o soldado David Manus, que solicitou carona no carro com placas israelenses conduzido por Lamia, foi morta sem defesa, por determinação do comando palestino. A brasileira não participou do assassinato, mas ajudou no sequestro. Não é assassina, mas está longe de poder ser considerada heroína.

O lado evidentemente correto de sua libertação tem a ver com uma decisão política de Israel, é uma conquista palestina, no contexto contraditório do apaziguamento das relações entre os dois povos. E nesse sentido a libertação deveria ser entendida e até saudada.

Comemorações, porém, deveriam restringir-se ao círculo familiar, à intimidade da personagem. Não havia razão para convidar o público a compartilhar a festa.

A Folha não se diferenciou do tom predominante na mídia, não manteve a contenção e o equilíbrio que o tema demandava. Veiculou até o cardápio que seria servido na recepção familiar a Lamia. Quando, afinal, os quitutes foram oferecidos, a imprensa, presente, também provou.

Ninguém a Folha incluída deu tratamento explicitamente elogioso a Lamia. Mas a superexposição e a falta de discrição na cobertura acabaram imprimindo sinal positivo ao personagem. É um subproduto perverso da espetacularização do noticiário, inofensiva em alguns casos, prejudicial na maioria.

O leitor Roland Kremp, diretor de uma escola para crianças carentes em São Paulo, alemão de nascimento e naturalizado brasileiro, ligou para o ombudsman para manifestar sua estranheza pelo destaque dado ao assunto: ''Muitos jovens podem tomar Lamia como falso exemplo e isso não é bom'', disse.

Por correio eletrônico, Matheus Drummond Costa foi enfático: ''Só falta agora, no país da impunidade, elegê-la deputada ou coisa parecida''.

Fazendo coro a cartas publicadas no Painel do Leitor, Noemi Maruyama criticou ''o confete todo que a imprensa está jogando na Lamia. Além de injustificável, só serve para confundir ainda mais a opinião pública''.

Se a brasileira Lamia Hassan contribuiu para um frio assassinato de cunho terrorista, ou se seus atos encontravam justificação na falta de alternativas para a luta palestina diante do ocupante israelense é a complexa questão que o noticiário acabou evitando.

Por situações assemelhadas, comandantes sérvios da Bósnia estão indo a julgamento por violações das disposições da Convenção de Genebra para crimes de guerra.

Comemorações por Lamia pela mídia, nesse caso, resultam tão incabíveis quanto o monumento erigido por colonos judeus ortodoxos em território palestino para homenagear o fanático que matou 29 árabes numa mesquita de Hebron em 94. Nada a comemorar.

FOLHA

Ouvida a respeito do caso, a editora de Exterior e Ciência, Andréa Fornes, 32, declarou:

''Há uma significativa diferença entre qualidade e quantidade na cobertura da libertação de Lamia Maruf Hassan. O fato de a Folha ter publicado extenso material sobre a ex-prisioneira se justifica por seu ineditismo.
Poucas vezes um/uma brasileiro/brasileira esteve no centro de um importante acontecimento internacional. A libertação das prisioneiras por Israel na semana passada representa o cumprimento de mais uma etapa do importante processo de paz em curso no Oriente Médio.

Não é por ter dado destaque ao assunto que a Folha 'imprimiu sinal positivo ao personagem'. Procuramos em todas edições deixar bem claro ao leitor que a brasileira participou, junto com o marido e outro palestino, do assassinato de um soldado israelense. Ela foi também responsável por essa morte.

Mas é necessário ressaltar, como fizeram representantes da comunidade judaica em entrevista à Folha e a outros veículos, a importância da libertação da brasileira e de outras prisioneiras palestinas no contexto político dos acordos de paz entre israelenses e palestinos.''


Endereço da página: