Folha de S. Paulo


"Abertas"

Você publicaria as três fotos que vê aqui? Sim ou não? Na sexta-feira passada, quem viu a Folha notou, elas saíram bem "abertas" na Primeira Página do jornal e na capa dos cadernos São Paulo e Cotidiano.

"Abertas", em jargão de redação de jornal, quer dizer que as fotos foram editadas em tamanho grande. Você comentou com alguém sobre as fotos, em casa, no trabalho? Revoltou-se com quem? O garoto? O policial? A Folha?

Feitas pelo repórter-fotográfico Moacyr Lopes Júnior, as fotos dispensariam legendas. Os policiais dominam o rapaz, que resiste a uma suposta blitz antidrogas. Usam de violência, seguram armas, mas também parecem subjugados. A despeito de apanhar, o garoto ri, escarnece.As fotos são redundantes. Mostram um lado da realidade com a qual a grande maioria dos moradores das grandes cidades brasileiras teve que aprender a conviver.

A miséria, o descaso com as crianças de rua, a violência que elas devolvem à sociedade são apenas um incômodo, cada vez mais tolerado e, quando possível, ignorado.

Duas leitoras me ligaram a respeito no mesmo dia, ambas para protestar contra a publicação das fotos e o título crítico que precedia as legendas: "Argumento da força".
A engenheira química Magda Lucia Piraine, moradora na região central da cidade, disse já ter sido agredida várias vezes por aqueles "trombadinhas da Amaral Gurgel".

Diz que são os responsáveis por ela sofrer de pânico quando passava por ali. Não passa mais.

A leitora entendeu que a publicação das fotos é simplista e demagógica, crucifica os PMs que "afinal, agiram com os meios que tinham para controlar a situação. Eles, que ao menos estão tentando fazer alguma coisa, não deveriam ser crucificados. Fiquei com mais dó do policial".

Também a dona-de-casa Edmar Fustinoni Pagani comunicou-se para transmitir seu protesto pelo "exagero" da publicação de seis fotos, três na capa do jornal, três nas capas dos cadernos Cotidiano (edição Nacional) ou São Paulo.

Para ela, a Folha contribui para estimular ainda mais a omissão da polícia, que já é totalmente desestimulada por causa dos baixos salários. Diz que a sociedade deveria se unir para enfrentar o problema, não desmoralizar quem está tentando fazer algo. "Aqueles meninos já colocaram até gilete no rosto da minha filha, você entende?", enfatiza. "O cidadão honesto está completamente desprotegido", acrescenta.

Os leitores Silvia Cortez, Mauricio Gonçalves e Ernande Pinho assinaram correio eletrônico para dizer "em cinco minutos de conversa no escritório, todos foram contra a reportagem".

Ninguém se comunicou para apoiar a publicação da sequência de fotos.

Para as duas leitoras que telefonaram, argumentei em favor da publicação das fotos.

Em si, as fotos já teriam importância jornalística. Mas publicar apenas uma delas não conseguiria mostrar os detalhes da cena e não teria o efeito de abalar a barragem de conformismo em torno do tema. "Abertas", em sequência, as fotos sacodem, ao menos por instantes, a sedação.

Reagimos. Às vezes, contra o jornal. Inclusive porque a miséria brasileira insiste em invadir suas páginas, esta cidadela "highbrow", cosmopolita, que tantas vezes está além dessas coisas. E a miséria se intromete em nossas vidas justo por meio deste emblema da nossa identidade e diferença, o jornal .

Não haveria talvez quem quisesse fazer com os garotos o que os policiais estão fazendo?

Em lugar disso, o jornal trai, escancara e repudia a truculência e a impotência policial, a ilegalidade, a eterna omissão do Estado, a nossa ambígua posição. Incomoda, é verdade. Irrita também. Pode não ter sido muito elegante ou na dose certa. Mas obriga a pensar.

LEMBRETE

Citada duas vezes na Folha quarta-feira passada, em ambas a autoria da última entrevista de Antonio Callado ao jornal foi atribuída apenas a Matinas Suzuki Jr.. A referida entrevista, publicada há uma semana, foi realizada igualmente pelo jornalista Mauricio Stycer.


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