Folha de S. Paulo


A melhor profissão do mundo

Só o interesse de Gabriel García Márquez por jornalismo o animaria a uma visita, na noite do sábado 4 de setembro, à casa em que nos hospedávamos na cidade velha de Cartagena. Depois das conferências do seminário "O Papel do Ombudsman e a Ética Jornalística", Jesus de la Serna ("El País"), Richard Harwood ("Whashington Post") e eu desfrutávamos um período de descanso na história cidade do Caribe.

Junto com Márquez vieram sua mulher e quatro guarda-costas do governo, cujos serviços ele aceitou depois que as autoridades lhe fizeram ver que se fosse sequestrado teriam que pagar qualquer quantia para libertá-lo.

A primeira coisa que lembrou foi de ter ficado de uma hora para outra sem dinheiro algum no Brasil, no dia do Plano Collor, quando a moeda, toda moeda, fora confiscada. Depois, falou do trânsito louco, de como morreu de medo da maneira como Chico Buarque guiava no caminho entre o aeroporto e a zona sul do Rio. De repente, num engarrafamento no túnel, salta de um carro uma mulher em um biquíni sumário. Ela devia ter no mínimo 60 anos, relata o escritor, impressionado.

Como se sabe, o Prêmio Nobel da Literatura de 1982 fez carreira como repórter no diário colombiano "El Espectador". Ele se queixa da maneira como as reportagens são escritas hoje. Critica quase tudo no jornalismo da Colômbia. Diz que seu sonho é ser ombudsman do "El Tiempo", o maior diário colombiano.

Ele se enfurece contra o excesso de aspas nos textos. Reclama do uso de declarações desnecessárias e do recurso às aspas quando o jornalista deseja, de chinfra, deslocar uma determinada palavra do seu sentido original. Quando um repórter escreve que José é "simpático" entre aspas, quer dizer que na verdade ele não é simpático, diz Márquez.

O excesso de declarações entre aspas frequentemente implica uma omissão do repórter na descrição do que ocorreu e na interpretação do fato. Aquilo do que Márquez mais se ressente é que o jornalismo se abstenha de contar uma história de maneira interessante e completa.

Márquez atribui ao advento das escolas de comunicação social uma grande responsabilidade no empobrecimento do texto jornalístico, que ele entende como gênero literário. Diz que a ênfase no ensino de teorias da comunicação e informação acabou tornando desprezível o esforço de formação de profissionais aptos a contar histórias atraentes e relevantes, o que estaria na base da perda de importância dos jornais na competição com outros meios.

Harwood não gostou. Acusou-o de nostálgico. Disse que os hábitos de leitura mudaram muito nos últimos 40 anos e que as pessoas que leem o fazem de maneira cada vez mais rápida e descompromissada.

Lembrou a pesada competição da televisão e de outros meios eletrônicos, disse que os jovens precisam ser atraídos, que muitos jornais tem sido fechados nos Estados Unidos por falta de leitores e também porque não conseguem se adaptar aos novos gostos. Na médica, Harwood acha que os jornais hoje são mais orientados para o mercado, isto é, são mais eficientes para satisfazer às necessidades de seus leitores do que no passado.

Márquez concordou com o diagnóstico de Harwood, mas disse que a única chance de atrair mais leitores e manter a influência dos jornais é torna-los mais interessantes e abrangentes. Questionou o fato de que o tempo de produção das edições é cada vez mais escasso, apesar da revolução tecnológica ocorrida nos últimos anos nas redações.

Para provar suas teorias, o escritor colombiano propôs à Universidade de Los Andes, de Bogotá, que ele próprio ministrasse um curso de duas semanas com dez pessoas interessadas em se tornar jornalistas. O curso consistiria apenas da redação de textos sobre um mesmo fato (o atropelamento de uma mulher, por exemplo). Os alunos receberiam diferentes pautas relacionadas com o mesmo fato. Um falaria com uma testemunha, outro com o marido da vítima, outro com o motorista que a atropelou e assim por diante.

Cada aluno teria que refazer seu trabalho várias vezes até que se obtivesse a reportagem apurada e redigida. Para Márquez, boa parte dos alunos não voltaria no segundo dia de aula. Acha que o curso revelaria apenas três repórteres, cuja vocação já se estaria clara desde o primeiro dia de aula. Ele acha que o jornalista já nasce com os dons para profissão, que requer também intenso treinamento e formação intelectual. Segundo o escritor, a burocracia da universidade resiste a autorizar o curso que propõe.

Márquez está envolvido num livro em que reescreve reportagens do período do "El Espectador", ou seja, ele está procurando as mesmas fontes que há cerca de 40 anos lhe forneceram as informações. O escritor procura colher versões alternativas, mais completas, ângulos opostos àqueles que registrou em suas reportagens.

Quer mostrar em que ocasião foi manipulado por uma fonte contaminada, a quem não interessava no momento um relato veraz dos fatos. Quer ouvir gente que participou da história mas não foi encontrada na hora para dar sua versão.

O objetivo é revelar também como o tempo modifica, para melhor ou para pior, a maneira como as pessoas descrevem os fatos de que participaram, chegando às vezes a ter visão inteiramente oposta à inicial. De certa maneira, Márquez pretende ser ombudsman de si mesmo, se é que isso é possível. O livro já tem título: "A Melhor Profissão do Mundo".


Endereço da página: