Folha de S. Paulo


Deputados assinam projetos sem ler

Parlamentares apoiam proposta de lei simulada pela Folha que transformou o Brasil em colônia de Portugal.

A manchete sobre a adesão ao projeto fictício e a notícia do telefonema para Erundina
Erundina e José Dirceu questionam ética da Folha

Duas reportagens publicadas nesta Folha recentemente suscitam uma reflexão sobre os limites éticos que os jornalistas devem observar na busca da informação. A primeira reportagem ganhou a manchete do jornal no domingo passado ("Deputados assinam projeto sem ler"). A segunda mereceu um título na capa de quinta-feira ("Erundina só atende ligações de ministros").

Ambos os trabalhos resultaram de expedientes destinados a enganar a boa-fé das fontes, induzi-las a erro. Na primeira e mais polêmica das reportagens, como se sabe, repórteres da Folha em Brasília contrataram uma pessoa para colher assinaturas de adesão a um projeto fictício que determinava a transformação do Brasil em colônia de Portugal. Assinaram o projeto 54 parlamentares, que não leram o texto até a parte final, em que apareciam os aspectos mais ridículos da lei.

Na reportagem sobre Erundina, jornalista da Folha, após inúmeras tentativas fracassadas de contato telefônico com a ex-prefeita, deixaram mensagens para ela sob a falsa identidade do coordenador político do governo, Henrique Hagreaves. Só assim conseguiram que a ex-prefeita retornasse a ligação, quando revelaram a ela o artifício usado para o contato.

PROJETO FALSO
O deputado petista José Dirceu, signatário do projeto falso, telefonou para ponderar sobre o procedimento da Folha no caso do projeto fictício. Alegou que a ementa (espécie de sumário colocado em destaque no alto da primeira página) não correspondia aos aspectos essenciais da proposta, o que é estabelecido pelo Regimento Interno da Câmara.

O deputado reconhece ter errado ao não ler o projeto, mas questiona: "Está correto que eu seja induzido ao erro e depois criticado por ter errado? É condenar à morte um cara que roubou pão na esquina. Isso é ético?".

O diretor-executivo da Sucursal de Brasília, Josias de Souza, que supervisionou o trabalho dos jornalistas Élvis Bonassa e Gustavo Krieger nessa reportagem, considera que sim: "O objetivo era apontar um desvio existente no Parlamento brasileiro. O apoiamento a projetos desnecessários e folclóricos, concedido rotineiramente sem que os projetos sejam lidos, emperra a pauta dos trabalhos, ocupa funcionários e gera grandes despesas ao país. Essa é a questão mais importante da reportagem, não o fato de o projeto ser fictício. O objetivo do jornal foi chamar a atenção para que a falha fosse corrigida. De agora em diante, o problema dificilmente se repetirá."

Josias de Souza diz ainda que no passado a Folha fez inúmeras reportagens sobre projetos folclóricos em tramitação no Congresso, mas que nenhuma provocação tanta repercussão. Declara também que, com o plebiscito de abril próximo, cresce a chance de o Congresso vir a assumir tarefas de governo caso o parlamentarismo seja aprovado, o que aumenta a necessidade de fiscalização da imprensa sobre o Legislativo.

DIREITO À INFORMAÇÃO
A mesma linha de raciocínio tem a secretária de Redação Eleonora de Lucena no caso do uso da falsa identidade junto a Erundina: o público tem o direito de saber e o jornal não mede esforços para informá-lo.

Em minha opinião, por melhores que tenham sido as intenções do jornal, os meios usados são condenáveis. Sem entrar no mérito do real valor informativo de reportagens baseadas em situações criadas artificialmente pelo jornalista, é preciso que sejam criadas normas de auto-regulação para estabelecer algum limite ético minimamente claro que impeça abusos na busca pela informação.

As diversas edições do Manual de Redação da Folha, não são explícitas a respeito. Pode um jornalista falsear sua identidade? Em que casos? Quais são as situações em que se pode induzir fontes a incidir em erro para obter notícias?

No exterior, vêm surgindo códigos de ética cada vez mais rigorosos, resultado da preocupação com a imagem de arrogância atribuída à imprensa em inúmeros episódios de intromissão na vida privada de cidadãos e no uso de métodos questionáveis na fiscalização de autoridades. Alguns desses códigos desrecomendam o recurso a meios enganosos para a coleta de informações. Incluem-se aí a escuta telefônica clandestina, a subtração de documentos oficiais sem autorização dos seus responsáveis legais e o suo da falsa identidade.

EQUILÍBRIO
Em geral, meios enganosos só são tolerados quando está em jogo decisões ou comportamento contrário às leis por parte de uma autoridade, ou a intenção de enganar a opinião pública, ou ainda quando correm perigo a segurança ou a saúde da comunidade.

Sem dar a devida importância ao uso equilibrado de suas prerrogativas, os jornalistas têm sido obrigados a assistir nos tribunais, e entre o público, o crescimento da ideia de que o direito à privacidade vem antes na hierarquia de valores a serem protegidos numa sociedade democrática, antes ainda do que o da imprensa livre.

Nada justifica a detenção de Elvis Bonassa e Gustavo Krieger por seguranças da Câmara na sexta-feira passada. Episódios como este aumentam as desconfianças a respeito da capacidade do Legislativo assumir responsabilidade serias na administração do país.


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