Folha de S. Paulo


Novela e jornalismo

O desempenho dos jornais na cobertura do assassinato da atriz Daniella Perez permite a constatação de que está se assistindo à inversão de uma hierarquia informal estabelecida entre os meios de comunicação nos últimos anos.

Até aqui cabia aos jornais, por sua independência, credibilidade e agressividade, levantar as informações que viriam a resultar em mudanças para o país. As televisões, a Globo em especial, apesar da magnitude de sua audiência, funcionavam como fatores de resistência, e acabavam tendo que ir ao reboque. Órgãos como a Folha firmaram sua identidade a partir de uma atitude que implicava mesmo aberta oposição ao tom parcial, emocional e piegas que emana do jornalismo da Rede Globo.

No caso Daniella Perez, entretanto, aconteceu o inverso. O estilo da emissora impregnou a todos. O apelo ficcional era irresistível, imediato, fácil. Mas ceder a esse apelo foi ao mesmo que ceder terreno ao antijornalismo.

É de se lamentar que os jornais tenham se deixado levar pelas enormes pressões, partidas inclusive do próprio público, para dar um tratamento ficcional ao assassinato de Daniella, um crime cercado de circunstâncias obscuras que cabia ao jornalismo apurar e revelar com serenidade. Em lugar disso, o noticiário foi essencialmente baseado em opiniões de policiais desnorteados, versões incriminadoras sem apoio em provas e "confissões" feitas a agentes e obtidas de maneia no mínimo duvidosas.

Assassinada uma funcionária sua, atriz conhecida em novela de destaque, seria natural que qualquer emissora tivesse sérias dificuldades de cobrir o episódio com isenção. O único atenuante é que também o assassino era funcionário da mesma emissora, atuando na mesma novela. Idealmente, a Globo deveria, pela sua proximidade dos envolvidos, alertar seu público para a dificuldade que tem de realizar cobertura isenta e profissional. Ou poderia usar o episódio para demonstrar a profundidade das mudanças havidas em seu estilo de jornalismo nos últimos anos, observando os dois lados com rigor exemplar. A opção tomada foi de abandonar qualquer salvaguarda e entregar-se ao sensacionalismo e ao pré-julgamento.

Não fosse essa pressão avassaladora, exercida pelo telejornal de maior audiência e potencializada pela união em horário nobre editada sem intervalo, provavelmente a mulher de Guilherme de Pádua, Paula de Almeida, estaria em liberdade.

Não se está a dizer que ela seja inocente, mas que não havia evidências que em condições normais justificassem a sua prisão. Menos base havia ainda para justificar as "reconstituições" do crime mostradas no Jornal Nacional, algumas das quais foram copiadas pelos jornais diários, mostrando Paula desferindo facadas em "Daniella" ou "Yasmin".

A própria Folha, que se esforça por noticiar com cautela as versões da polícia, no início da cobertura chegou a transitar entre novela e realidade. A manchete do caderno Cotidiano do dia 30 de dezembro anunciava a mote de "Yasmin", a personagem vivida por Daniella Perez. "O Globo" fez ainda pio ao estampar em título na capa o veredito do caso: "Mulher de 'Bira' o ajudou a matar Daniella Perez".

Em momentos de tão grande confissão, em que a competição acaba prejudicando o esclarecimento da verdade, é preciso voltar aos princípios de qualquer cobertura, especialmente a policial. Todos são inocentes até prova em contrário. Deve-se desconfiar de todas as versões, especialmente oriundas de autoridades policiais. Deve-se adotar precauções contra juízos apressados e distanciar-se ao máximo das pressões da opinião pública.

As razões para desconfiança em relação à polícia resultam também de uma constatação. À semelhança do que ocorreu em outras áreas do aparelho de Estado, os métodos científicos de apuração policial no país estão ultrapassados, quando não foram simplesmente abandonados. De interpostos ´ticos, com proteção a imagem dos suspeitos, então nem se cogita nas delegacias. Imperam a ignorância científica e as ilegalidades, quando não a coação e a tortura.

Desorientados em geral, despreparados no trato com a opinião pública, os policiais encarregados da investigação divulgam as mais variadas especulações. Ressuscitam mais uma vez a tese do ritual macabro, descobrem "testemunha-chave" que depois se revela desequilibrada mental, anunciam a "confissão" de Paula, e confundem até a arma do crime com uma chave-de-fenda.

Na ponta dessa espécie de chicote, sem informações, se agarra a mídia, que apesar do esforço para obter informações de maneira autônoma, acaba sendo arremessada impotente em várias direções. A mesma mídia que não se curvou diante do poder de Collor, se perde agora em salamaleques a Cidade de Oliveira, o delegado do caso.


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