Folha de S. Paulo


Os adoradores do Diabo, a P-2 e a imprensa

Um dos grandes assuntos da mídia deste ano ficou na memória como o "ritual satânico" de Guaratuba (PR). Em julho passado, nem mesmo o reboliço criado pelas investigações da CPI do Collorgate impediu que o caso recebesse destaque nas televisões, rádios, revistas e jornais.

O suposto rapto e assassinato do menino Evandro Ramos Caetano,6, num ritual hediondo, parecia compor ainda mais o cenário de um país em crise envolvido por inteiro na constatação de que a falta de mínimos padrões de dignidade e respeito ao próximo impregnara o tecido social de alto a baixo, desde os jardins da Dinda até um terreno balsio de Guaratuba.

Evandro desapareceu em 6 de abril. Um corpo de criança, já em decomposição, o qual, depois, veio a ser identificado como o de Evandro, foi encontrado no dia 11. Cerca de três meses depois, a mulher do prefeito de Guaratuba, Celina Abagge e sua filha , Beatriz, foram detidas, sem exibição de mandados judiciais, em sequencia à prisão de um pai-de-santo denominado Osvaldo Marceneiro e outras quatro pessoas supostamente envolvidas com o rapto e assassinato do menino.

A polícia exibiu uma confissão feita pelos acusados, gravada em fita-cassete, admitindo a autoria do crime. De imediato, a confissão foi candidamente divulgada por todos os veículos de comunicação do país sem que se averiguasse as condições em que ela foi obtida, como se fosse a expressão da verdade.

O depoimento da fita era devastador para as rés. Deu alento ao clima de histeria que se seguiu: manifestações pediram a morte dos "adoradores do demônio". Os protestos derivaram em depredações da Prefeitura, ataques à casa dos Abagge, confrontos com a polícia e na destituição do prefeito pela Câmara Municipal em condições suspeitas, sob irresistível pressão da massa enfurecida.

A imprensa tem por obrigação duvidar sempre das versões que a ela chegam, venham de quem vier. Esse princípio é ainda mais essencial quando essas versões vêm de autoridades policiais. Entretanto, talvez seja na área da cobertura policial onde haja mais tolerância nas redações para uma combinação de falta de preparo, subserviência e concessão ao sensacionalismo.

Pairam sérias dúvidas sobre as condições em que foram obtidas as confissões de Guaratuba. Após a prisão, os detidos ficaram incomunicáveis por cerca de 9 horas em local desconhecido. A "confissão" foi colhida nesse período e não pôde ser acompanhada por nenhum advogado. A prisão foi feita por integrantes do Serviço Especial da Polícia Militar do Paraná, a P-2. Trata-se d um organismo policial secreto, cuja atuação não se distancia muito da que caracterizava os organismos de repressão do regime autoritário.

Quando tiveram oportunidade de falar diante de seus advogados, os acusados relataram torturas, na forma de choques, sufocamento, socos no estômago e "toques" nos órgãos genitais. O promotor do caso, Antonio Cesar Cioffi de Moura, diz que a referência a tortura é um direito que a defesa tem para tentar diminuir a impacto da confissão, a principal peça da acusação.

Os jornais registraram secundariamente as denúncias dos acusados de que as admissões de culpa foram arrancadas sob tortura. Na maioria dos casos não passavam de meros registros formais, publicados com muito menos destaque do que as manchetes baseadas na versão oriunda da P-2.Os programas jornalísticos das TVs simplesmente desconsideraram essas alegações de sevícias.

Depois que empenha sua credibilidade para dar curso a uma versão duvidosa, a imprensa tem enorme dificuldade em recuar. Incentivada pela mídia, a sociedade cria um juízo a respeito do caso. Forma-se uma espécie de unanimidade, na qual evidências contraditórias não têm vez. O jornal paranaense "Gazeta do Povo", depois de destacar em manchetes que o caso Evandro poderia ser uma montagem com objetivos políticos, sofreu seguidas ameaças de depredação. Preso não tem direito ao "outro lado".

Não se diga que supostas ilegalidades ocorridas na investigação de Guaratuba seriam surpreendentes. É o fato reconhecido pelas próprias autoridades que as técnicas científicas de investigação policial caem cada vez mais em desuso, substituídas pela força bruta.

Faria bem a credibilidade da imprensa se ela se recuasse a dar destaque a qualquer confissão obtida sem a presença do advogado das pessoas acusadas. Do contrário, a imagem de veículos de comunicação, que ao que se sabe não é das melhores, pode ser arrastada para a mesma situação de desprestígio e descredito em que , salvo exceções, encontra-se o aparato policial do país.

ALTA E BAIXA

BAIXA para a imprensa pela pobreza da cobertura das eleições municipais; há um excesso de pesquisas, que não são a coisa mais importante da eleição, e uma enorme dificuldade para informar de fato quem são os candidatos e analisar suas idéias para os problemas dos municípios.


Endereço da página: