Folha de S. Paulo


Um rombo, que vale por 3 Collogates, pode passar batido

O espírito atento de um leitor que prefere ficar anônimo permite trazer à luz o que pode ser um caso de omissão da imprensa diante de outra investida mansa do governo contra o contribuinte. Um caso que atinge Cr$ 4,4 trilhões, ou US$ 700 milhões, ou o triplo do que se apurou até agora nas investigações do Collorgate. Passando assim, sem qualquer desafio, diante do nariz de todos os jornalistas encarregados do assunto.

Na quarta-feira passada, o Departamento Econômico do Banco Central divulgou em Brasília sua "Nota para a Imprensa", com o comportamento dos principais "agregados monetários" no mês de setembro. O texto, lavrado no jargão típico, procurava "explicar", entre outras coisas, o comportamento da "base monetária" que expandiu 24,6% em setembro, ou cerca de Cr$ 5 trilhões.

Numa das 23 tabelas que acompanham a "Nota", mas especificamente no quadro intitulado "Fatores de Expansão da Base Monetária", uma rubrica tem valor especial e atípico. É a rubrica "Assistência Financeira de Liquidez", em que aparece o valor de Cr$ 4,4 trilhões para o mês de setembro. O valor é excepcionalmente grande se comparado com os meses anteriores, nos quais foi quase sempre negativo (os dados negativos aparecem na tabela entre parênteses).

Assistência financeira de liquidez, escreve o leitor, significa que alguns, ou um banco, estouraram isto é, deu cheques sem fundo e foi se cobrir no redesconto do Branco Central, Bancos privados -prossegue o leitor- normalmente não estouram porque seus proprietários, por motivos óbvios, não o permitem. Bancos que estouram normalmente nos pertencem (são públicos) e estouram não porque financiaram o interesse do público, com nossa inocente oposição socialista acredita, mas o interesse privado de governadores e do presidente.

Se não houvesse esse estouro, diz ainda o leitor, a base monetária teria se expandido Cr$ 600 milhões, ou menos de 3%. Nesse ponto, o missivista abre parênteses: a inflação só pode baixar no dia em que a expansão monetária deixar de existir.

A nota do Banco Central reconhece, de passagem, o comportamento atípico das operações de assistência financeira de liquidez em setembro, mas faz uma observação "tranquilizadora", apostando na credulidade dos jornalistas: "Cabe registrar que se trata de operações localizadas, que não representam qualquer tipo de dificuldade ao sistema".

O leitor protesta com irritação: "A Folha não poderia ter deixado de ver escândalo desta relevância. O povo, que provavelmente é dono desse banco (oque deu o estouro) e vai pagar a conta via imposto inflacionário, precisa saber quem é o político responsável por isto, que providência será tomada para tentar reaver em parte este dinheiro".

Em resumo: no último mês da administração Collor, quando o presidente lutava com todas as forças para manter-se no poder, Cr$ 4,4 trilhões foram supostamente usados para socorrer um ou vários bancos estatais, e nenhum jornalista da Folha ou de outro jornal desconfia de nada. O relatório oficial mostra indícios, mas todos o aceitam candidamente, hipnotizados, extáticos, diante da cascata de números.

Ninguém faz a pergunta que ainda não foi feita. Quais são as operações localizadas, como diz o BC, que obrigam a uma "assistência" que chega a quase 88% de toda a variação monetária ocorrida no país em um mês? Quais os bancos envolvidos? Quem são os responsáveis? Qual o impacto na taxa da inflação? Quem vai pagar a conta? Por quê?

Há ocasiões em que, pela força do contraste, tudo o que vai para as páginas dos jornais tem um certo ar de mentira. É como se todas as outras notícias estivessem ali apenas ocupando espaço para impedir que algo mais verdadeiro possa se revelar.

A IMPRENSA CAÇA SUAS BRUXAS

A Folha e os grandes jornais brasileiros se deixara manipular pela polícia na cobertura das apurações do suposto "ritual satânico" de Guaratuba (PR) , em que se afirma que crianças teriam sido barbaramente sacrificadas em cerimônias de uma seita religiosa.

Um casal de suspeitos foragido, o argentino José Taruggi e sua mulher a brasileira Valentina Andrade, receberam a denominação de "bruxos", foram prejulgados e condenados por antecipação pela imprensa, que martelou em manchetes seguidas, "bruxos", "bruxos, "bruxos".

Os acusados estavam escondidos para fugir, como alegam, à fúria popular provocada também por esse tipo de noticiário. Durante meses de investigação, não apresentaram seu lado da história. O grosso do que a imprensa publicava tinha apoio apenas em versões policiais. Foi o caso da interpretação de uma fita de vídeo em que o argentino, em "transe", afirmava, segundo a polícia, "matem as criancinhas".

Em crítica interna distribuída à Redação no dia 15 de julho, numa nota denominada "Caça as Bruxas", escrevi que o Manual da Folha estava sendo desobedecido, disse que o caso exigia isenção. Não houve qualquer mudança no jornal, que manteve o mesmo tom em seu noticiário.

Recentemente no dia 7 de outubro, tudo foi desmentido. Os acusados apareceram. Foram ouvidos. A polícia retirou a versão, disse que o trecho da fita de vídeo mostrava Taruggi falando "mas tem as criancinhas" e não "matem as criancinhas" e declarou-os inocentes. Os jornais, mais uma vez, foram atrás da polícia, fazendo de conta que nada tinha acontecido, que nenhum inocente (até prova em contrário) tinha sido publicamente espezinhado com bases em indícios inconsistentes.

Os dois pararam de ser chamados de bruxos, mas ficou a lembrança de um episódio exemplar, em que a Folha -e todos os outros grandes jornais, rádios e TVs- se deixou guiar por "critérios" editoriais típicos da imprensa sensacionalista.

Consultada a respeito, a Secretária d Redação da Folha Eleonora de Lucena assinalou que o termo bruxo saía sempre entre aspas no jornal, mas declarou também que o caso mostra a importância de que o jornalismo mantenha o maior distanciamento e reserva diante das informações fornecidas pela polícia e questione sempre as versões divulgadas por todas as fontes envolvidas em determinado fato.


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