Folha de S. Paulo


Provas, provas e mais provas

Não há motivos para nenhuma alegria diante da crise política e do desfile de escândalos governamentais que a imprensa vem expondo com uma regularidade tão meticulosa e detalhada que até assusta e chega a ultrapassar a capacidade de tolerância dos cidadãos.
Desde a entrevista de Pedro Collor à revista "Veja", não param de surgir depoimentos e documentos, numa sucessão que evoca o mais doloroso rito típico de um tribunal. A exposição detalhada dos crimes ofusca e supera a mais ousada das expectativas.
Um pessimista, diante do quadro desolador que apuração do Collorgate desenovela cruelmente aos olhos do país, poderia dizer que com a democracia o Brasil está em sua pior fase. Mas, por mais que seja óbvio, deve-se pensar que agora a imprensa, o Parlamento, a Justiça e até mesmo a polícia têm liberdade de trabalhar para fazer com que os escândalos sejam conhecidos de modo a que os cidadãos possam exercer reação diante deles. O Collorgate, pela dimensão e amadorismo de métodos que o caracterizam, é também herança do período autoritário, em que os governantes se achavam em quase total impunidade.
Além desse entendimento, de que a liberdade de expressão é a essência do regime democrático, se robustece a imagem da imprensa, ao menos até agora, como prestadora de serviços ao país e aos cidadãos. Mas o que mais surpreende em todo o episódio, é o nível impressionante de acertos nas revelações até agora.
Diante da quantidade e da importância dos fatos apurados, o desempenho da imprensa tem sido superior ao que se poderia esperar em circunstâncias como essas, em que nos primeiros momentos os veículos de comunicação - "Veja e Folha, principalmente - tinham suas imagens em grave risco. Até hoje nenhuma das grandes revelações feitas em toda essa cobertura foi desmentida de maneira consistente.
Desafiados a apresentar provas, após os primeiros furos, repórteres acabaram trazendo à tona uma montanha de informações que pode vir a pôr abaixo o governo Collor num episódio absolutamente único em toda a história do país.
É uma vitória do jornalismo investigativo, de um tipo de trabalho de reportagem que não confunde apuração com agressão nem com cara feia. Marca registrada da Folha há uma década, a investigação é praticada, a investigação é praticada com desenvoltura por todos os grandes órgãos da imprensa escrita. Até pelo jornal carioca "O Globo", cujos bem-sucedidos esforços podem a tempos ser prejudicados por intervenções de sua direção em atendimento a conhecidas conveniências políticas.
O que há pela frente pode ser talvez ainda mais complicado. A investigação chega cada vez mais perto de um grupo - que pode ser muito grande - de empresas e empresários. Chega então ao próprio cerne da malha de relacionamentos entre poder econômico e poder político que se apropria ilegalmente dos recursos da sociedade e de onde se origina o atraso brasileiro. Penetrar essa parte do problema é indispensável, mas vai levantar levantar forças poderosas e testará mais uma vez, em relação ao uso arbitrário do poder econômico. Serpa que vamos tão longe?

A média da mídia
O "Jornal do Brasil" fez uma salada histórica na quarta-feira passada: chamou o marechal francês Pétain de "Marshal Philippe Pétain", incorporando a designação inglesa de sua patente militar ao nome próprio. o "JB" também rebaixou Pétain, chefe do governo colaboracionista sediado em Vichy durante a Segunda Guerra, a "ex-prefeito" daquela cidade.

Lafaiete e o Collorgate
Recebi o seguinte fax de Lafaite Coutinho, presidente do Banco do Brasil:
A propósito da nota "alta" que o senhor atribuiu à revista "Veja", por "noticiar as ameaças de membros do governo federal contra os proprietários da editora Abril", a bem da verdade e da ética jornalística, sobretudo pelo fato daquela publicação ter me escolhido como matéria de capa para ilustrar seu jornalismo pautado no achincalhe, gostaria de fazer as seguintes considerações:
1. tenho afirmado à exaustão que não me cabe julgar as práticas jornalísticas seja da revista "Veja", seja de qualquer outro órgão de imprensa. Contudo, não posso deixar de manifestar minha indignação diante do tratamento calunioso e debochado que me vem sendo dispensado, tanto pessoal como profissionalmente, por aquela publicação paulista. Assim, em nome da liberdade de imprensa e da livre expressão, faço valer meus direitos de cidadão para usar da prerrogativa de defesa às acusações levianas e irresponsáveis que me são infligidas;
2. a verdade é que procurei, como cidadão, e não como dirigente de instituição financeira oficial, saber se o "publisher" de uma revista, que se mostra tão comprometido com a verdade, cumpre, rigorosamente, os valores que defende. Dessa forma, ao tomar conhecimento de uma operação de compra e venda de imóvel que me pareceu um caso típico de subfaturamento, realizado exatamente por alguém que visivelmente aparece como arauto da moralidade, tornei-a pública.
3. o senhor Roberto Civita adquiriu, em 7 de fevereiro de 1991, um apartamento, no edifício Fábio Prado, com área de 993,31 m2, pelo valor de 383 mil dólares, quando, na época, vendiam-se, naquele mesmo prédio, unidades por valor bem acima de US$ 1 milhão. Exibi os documentos comprobatórios à reportagem de "Veja" e questionei, então, que a explicação teria o senhor Civita para aquele preço tão abaixo dos praticados pelo mercado imobiliário de São Paulo.
Ora, num momento que a imprensa se julga ter o direito de questionar até assuntos de foro íntimo sobre a vida de um homem público, não me é lícito também indagar porque para o proprietário de uma publicação tão conceituada como "Veja" o valor de seu imóvel seja tão díspare daqueles pagos por outros brasileiros?
4.pois bem, Senhor Ombudsman, como resultado da minha "ousadia", fui escolhido para ser o protagonista de uma matéria que em nenhum momento primou pela ética e pela seriedade que devem pautar o jornalismo comprometido com a realidade dos fatos e a informação idônea. "Veja" optou pelo tom desrespeitoso, menosprezando e ridicularizando minha pessoa e a minha atuação como presidente do Banco do Brasil. Esses fatos me levaram a crer que a razão daquela capa em que apareço com um chapéu de nordestino e com a pecha de "Pistoleiro" não o interesse jornalístico, mas a vingança pessoal, porque provoquei a ira de Roberto Civita;
5. como o senhor se dedica a avaliar a ética no jornalismo devo-lhe dizer que discordo de sua leitura sobre aquela reportagem, por entender que ela não é um produto jornalístico, mas o resultado de uma represália. Considero, ainda, que o senhor Civita traiu seus leitores, manipulando a função social de um instrumento de informação, usando-o para fins poucos louváveis, como a retaliação à minha pessoa. Em minha vida profissional e pública sempre honrei os cargos que me foram confiados e é nessa arena, com respeito e seriedade, que espero ser questionado dos meus atos administrativos. Finalmente, perguntou se o senhor saberia me responder por que a imprensa, especialmente a Folha de S.Paulo, tão ciosa de seus compromissos com a verdade, não apurou a informação da compra de imóvel possivelmente subfaturada?
Lafaiete Coutinho Torres
Presidente do Banco do Brasil
A Redação da Folha foi consultada a respeito da questão feita no último parágrafo do fax de Coutinho. Afirma a secretária de Redação da área de Edição, Eleonora de Lucena: "O jornal não está aí para bisbilhotar a vida particular dos cidadãos, mas quer saber, sim, como atuam os ocupantes de cargos públicos na administração dos recursos da sociedade".

Retranca
O placar de leitores que entraram em contato com o ombudsman para manifestar sua opinião a respeito da cobertura do Collorgate na Folha está assim: 27 leitores criticam o noticiário, por considerá-lo preconceituoso em relação ao governo Collor e 23 leitores ligaram para elogiar o jornal por sua independência e coragem.


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