Folha de S. Paulo


Os bebês deformados de Rondônia

A "revelação" foi feita pela Folha no dia 09 de maio passado, mas continua gerando repercussão até agora em lugares tão distantes como o Japão. Naqueles dias anteriores à Cúpula da Terra, no Rio, a manchete do caderno Cotidiano trazia à tona denúncia de estrondo: "Mercúrio deforma bebês em Rondônia". Subtítulo dava detalhes: "Pronto-socorro em Porto Velho registra 22 natimortos em seis meses, além de fetos hidrocéfalos".

Abaixo, começava o texto, assinado pelo correspondente da Agência Folha em Manaus, Éfrem Ribeiro: "A contaminação por mercúrio na bacia do rio Madeira provoca o surgimento de fetos com deformações e anomalias em Rondônia. A afirmação é do médico do Hospital de Doenças Tropicais e do Pronto-Socorro de Porto Velho (RO) Reinaldo de Souza, 40. Ele diz que em seis meses o pronto-socorro registrou 22 casos de crianças que nasceram mortas, filhas de mulheres contaminadas por mercúrio. Foram registrados casos de retirada de fetos deformados, natimortos com seis a oito dedos em cada pé, atrofia nos membros inferiores e com hidrocefalia (água no cérebro)..."

NO JAPÃO

A notícia teve repercussão internacional, até no Japão. O famoso e liberal "Asahi Shimbun" (7 milhões de exemplares diários) designou o repórter Masekazu Honda, como enviado especial ao Brasil. Honda foi a Porto Velho, não conseguiu falar com o médico Reinaldo de Souza (que já não estaria mais trabalhando no hospital). Na reportagem, publicada no Japão em 25 de maio, repete muitas informações que tinham saído na Folha, mas faz a ressalva de que elas não tinham respaldo de nenhum órgão oficial.

O título diz algo como "Nas profundezas da Amazônia"; "O problema da contaminação das águas está se agravando". Subtítulos explicam mais: "Nas minas de ouro, algo está sendo jogado nos rios"; "Crianças deformadas e mortas estão nascendo". Questionado pela correspondente da Folha em Tóquio, Andréa Fornes, a respeito da seriedade de suas fontes, Honda disse na quinta-feira passada que citara a Folha apenas de passagem e que confiava no jornal brasileiro.

A partir da publicação da reportagem no "Asahi", um órgão concorrente, o "Sankei Shimbun" (mais conservador e com 2 milhões de exemplares/dia), também enviou um jornalista à Amazônia. O repórter Tsugumasa Uchihata veio ao Brasil para o Rio-92, mas depois foi checar se o concorrente fizera um bom trabalho.

NO BRASIL

Enquanto isso, em Manaus, a outra fonte citada na reportagem da Folha, o chefe da Coordenadoria de Pesquisa em Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Bruce Forsberg, enviava mensagem a mim para desmentir quase todas as informações atribuídas a ele na Folha.

A partir da carta de Forsberg, que trabalha há 11 anos na Amazônia como biogeoquímico foram solicitados esclarecimentos do correspondente em Manaus. Este respondeu reconhecendo parte dos erros na reportagem. Mas o jornalista não respondeu ao item fundamental levantado por Forsberg: "O que me preocupa mais nesse artigo não são os erros técnicos, mas a maneira que o autor manipula os fatos para exagerar e sensacionalizar o problema. O caso dos 'bebês deformados' é um exemplo nítido... Todos os hospitais do país registram uma certa frequência de óbitos e deformidades entre os recém-nascidos. A incidência dessas deformidades é geralmente maior entre mulheres do Nordeste e prostitutas... para demonstrar que as deformidades encontradas em Porto Velho são contaminação mercurial, deveria ser demonstrado que essas ocorrem com mais frequência em Porto Velho do que em cidades sem poluição mercurial, controlando por idade, classe econômica, ocupação, história médica e alimentação da mãe. Eu duvido, sinceramente, que o médico citado fez um estudo dessa natureza para citar sua conclusão".

A FONTE

Faltava então a palavra do médico Reinaldo de Souza, que fornecera os dados "mais quentes". Após repetidos e demorados contatos com o secretário de Saúde em exercício de Rondônia, Léo Godinho, com o secretário de Desenvolvimento Ambiental, Francisco Pereira, com o presidente do Conselho Regional de Medicina daquele Estado, José Erodício Azevedo, foi possível concluir:

1) O "médico" Reinaldo de Souza, principal fonte da Folha, nunca foi funcionário de nenhum hospital ou pronto-socorro público de Porto Velho ou Rondônia;
2) apresentado por um outro médico da cidade, a direção do Centro de Medicina Tropical de Porto Velho permitiu que ele ali trabalhasse sem apresentação de documentos por alguns dias, período em que deu a entrevista;
3) chamado a mostrar documentos para contratação como funcionário, o suposto médico simplesmente desapareceu;
4) não há registro de Reinaldo de Souza no Conselho Regional de Medicina de Rondônia;
5) nem o Centro de Medicina Tropical, nem o Pronto-Socorro de Porto Velho fazem partos ou tratam de contaminação por mercúrio. O hospital de referência para ambos os casos é o Hospital de Base Dr. Ari Pinheiro, o maior do Estado e que não foi visitado pela Folha.

Em sua defesa, Éfrem Ribeiro diz que vários médicos com quem falou na Amazônia informaram sobre a existência de bebês deformados por efeito da contaminação por mercúrio. Mas o repórter também reconhece que nenhum médico relatou tantos casos e atribuiu-os com tanta determinação como o "doutor" Reinaldo de Souza.

Estado em que o atraso é tanto que se permite que um "médico" atenda ao público sem contrato e sem mostrar diploma, Rondônia não dispõe até hoje de estudos conclusivos sobre a extensão dos danos que o mercúrio usado nos cerca de cem garimpos provoca à saúde das populações ribeirinhas.

CREDIBILIDADE

Neste ambiente de ignorância, graça todo tipo de crendice e desinformação. Se se abre mão dos rigores elementares na apuração, se nada é checado com especialistas e tudo que pousa na mesa de edição de São Paulo é publicado, tem-se a impressão de que o único critério para o que se deve publicar é o da sensação causada por uma epidemia de deformados, de natimortos e hidrocéfalos. Para evitar abalos maiores à sua credibilidade, a Folha deve recuperar padrões severos de checagem que estão sendo esquecidos de forma preocupante.

Com o aval dado pela publicação em um jornal da importância da Folha, o mito dos bebês correu o mundo. Hoje, no Japão, o "Sankei Shimbun" publica reportagem mostrando que o seu concorrente, "Asahi Shimbun", e também um outro jornal, de um país bem distante, erraram feio.


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