Folha de S. Paulo


Tiradentes e o pregão

A passagem do bicentenário da morte de Tiradentes permite uma reflexão acerta das diferentes atitudes que a imprensa, e de cera forma também as elites do Rio e São Paulo adotem em relação à inconfidência Mineira.

A data tem também relevância política e regional, como evidência da psicologia coletiva existente em relação àquilo que se considera como um momento fundamental para a criação de "valores nacionais", que aglutinem a nossa "nacionalidade", o ser brasileiro.

São Paulo e Rio sempre observaram a data de maneiras diferentes. Na terça-feira passada, data do bicentenário, "Jornal do Brasil" e "O Globo", editados no Rio, foram mais reverentes e destacaram fotos alusivas ao evento.

Em São Paulo, "O Estado de São Paulo" foi mais moderado. Deu uma pequena chamada na capa. A Folha ignorou o assunto.

A comparação é significativa: enquanto os jornais do Rio mostravam na capa cenas de um tom quase religioso sobre o martírio do herói da Inconfidência, a Folha estampava em quatro colunas uma foto de operadores da bolsa de Valores de São Paulo se atropelando no pregão da véspera, quando fora batido o recorde histórico de negócios. Era como se o jornal estivesse a dizer que a história que interessa a São Paulo é outra.

É claro que há muito de coincidência nisso tudo. Mas há também espaço para que se façam algumas relações. O Rio dá mais importância à maioria das datas nacionais de um modo geral. Com Minas, tem relação de mútua reverência.

A tradição político-administrativa pesa muito ainda hoje, mesmo porque nada equivalente surgiu para preencher o vazio aberto no inconsciente carioca pela transferência da capital para Brasília. A nostalgia de um suposto passado de poder pesa muito. Até há pouco tempo o "JB" escrevia as palavras Presidente, Ministro e Deputado assim, com letra maiúscula, da maneira como é tradicional nas referências ao poder personificado desde os tempos do Rei.

Os inconfidentes tinham ligações com a cidade. Tiradentes foi executado no Rio. Além disso, o grande livro sobre o movimento "O Romanceiro da Inconfidência", foi escrito por Cecília Meireles, uma cariosa.

A marca de São Paulo, e especialmente da Folha, é diferente. Há auto-suficiência e imediatismo. Prospera um, digamos assim, desligamento em relação ao que anda pelo "resto" do país, não apenas em termos geográficos mas também temporais.

Junto com o bicentenário discutiu-se a real importância do movimento dos inconfidentes e de Tiradentes dentro dele. O "JB" ouviu pesquisadores que basicamente reforçavam a tese expressa no título de sua principal reportagem: "O herói que a memória nacional consagrou". Tiradentes seria um mito que vingou porque foi adorado pelas massas contra a vontade imposta pelos poderosos.

"O Estado" noticiou que a prefeitura petista de São Paulo estava fazendo uma programação nas escolas para mostrar Tiradentes "sem a auréola de herói", cuja imagem de longas barbas e cabelos compridos fora forjada, segundos os especialistas ouvidos pelo jornal paulista, para que ele se tornasse uma espécie conveniente de "Cristo da Pátria".

Vale notar que os jornais colheram opiniões de pesquisadores sérios, mas nenhum pôs em choque versões conflitantes o "outro lado" histórico por assim dizer. Não há novidade em se dizer que na história e sua interpretação nos jornais não são de forma algumas neutras e objetivas. Elas variam de acordo com a época, o veículo e reforçam também inclinações bairristas, que orientam e enviesam o noticiário, como ocorreu neste caso.

E a Folha. Bem, a Folha estava de olho no pregão.

RETRANCA

O assessor de Comunicação Social do governo da Bahia, jornalista

Paolo Marconi, escreve para criticar a Folha. Diz que o jornal distorceu declaração do governador feita em entrevista ao repórter Hugo Studart e publicada na segunda-feira passada.

Marconi relata que em resposta a uma pergunta ("O que ele - presidente- precisa fazer para afagar os parlamentares?"), ACM disse: "Primeiro, um governo sério. Segundo, não há lugar no Brasil que não precise de estradas, escolas ou postos de saúde. Acho que o presidente não pode fazer um governo exclusivamente de cofres fechados, sem atender ao social (grifo é do missivista), porque pode dar problemas futuros maiores. Se não há dinheiro sobrando, o governo pode resolver as prioridades em negociação com os políticos.

Marconi diz que a partir dessa declaração o redator escreveu que o governador baiano "quer que o presidente abra os cofres para os políticos". A manchete da página avançou ainda mais: "ACM diz que Collor precisa 'abrir o core'". A chamada de capa foi no mesmo tom. Neste caso, o jornal atribuiu ao governador expressão que ele simplesmente não falou ("abrir o cofre"). O procedimento contraria as recomendações do verbete "declaração textual" do Manual de Redação do jornal.

O bom jornalismo recomenda que declarações como as do governador da Bahia sejam encaradas com ceticismo e distanciamento político, atitude que o jornal deve ter em relação ao que é dito pelos personagens do noticiário de uma forma geral, especialmente os políticos. Isso não se confunde com a alteração da ênfase e deformação do teor das declarações, partam elas de quem for.

ALTA E BAIXA

ALTA para a Folha, por lançar sua revisa dominical. Dirigida às mulheres e à família, a "Revista da Folha" pode vir a satisfazer necessidades de informação de uma parcela de leitores que há muito tempo estava meio esquecida. É conferir.

BAIXA para a Folha, por destinar a revista à circulação apenas regional, na Grande São Paulo. Há fortes razões comerciais, é certo. Mas é também inevitável constatar que estão criadas assim duas categorias de leitores, os que vão receber a revista aos domingos e os outros.

BAIXA para a Folha, por não registrar na reportagem de lançamento da revista que o "JB" publica a sua há vários anos. A Folha lembrou de revistas que circulam encartadas em jornais de vários luGares do mundo, menos da concorrente nacional.


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