Folha de S. Paulo


A garota de Belém

Era 29 ou 30 de outubro de 90, o fotógrafo Rui Paquini passeava como turista pelo mercado do Ver-o-Peso em Belém. Ele e a mulher olhavam as barracas com peças de artesanato. Perto ia um segurança. No passado, Paquini tivera seu equipamento roubado por ali.

O trabalho de Paquini é publicitário, mais preocupado com a forma. Nele, que tem por princípio não fotografar a miséria, a cena, não causou interesse especial, apesar de sua força: uma jovem, sentada num caixote, costas para a rua, cabeça baixa, exibia nas cotas cartaz de papelão: "Vendo". A mulher de Paquini insistia para que ele registrasse a cena.

Ele fez a foto. Chegou perto e perguntou ao homem do chapéu, sentado ao lado se a menina estava mesmo à venda. A reposta foi positiva. O fotógrafo perguntou o preço. Pasquini não se lembra da quantia em cruzeiros, mas recorda que era o equivalente na época a US$ 50. A conversa acabou aí.

De volta a Brasília, onde mora e trabalha, Pasquini tempos depois ofereceu a foto "não para publicação", como disse na sexta-feira passada, ao seu amigo e jornalista Gilberto Dimenstein, diretor da Sucursal de Brasília da Folha.

Na edição de 5 de fevereiro passado, quinze meses depois, a Folha trazia a foto no alto da capa, em quatro colunas, e a legenda; "Prostituta é exposta na calçada da do mercado em Belém, capital do Pará, com placa onde está escrito a caneta: "Vendo"". Acima da foto, o título: "Amazônia é rota do tráfico de escravas".
Impulsionado pelo impacto da foto, o jornal lançava série de reportagens de Dimenstein, mostrando em detalhes aquela que talvez seja a mais desoladora aberração social brasileira: prostituição infantil pela tortura, a escravidão de adolescentes prostitutas para o tráfico de drogas, o lenocínio incentivado pela ausência e a omissão dos poderes públicos na região amazônica.

A série enfocou em primeiro lugar a situação da vila de Cuiu-Cuiu do município paraense de Itaituba, zona de garimpo como a de Serra Pelada; outro foco de prostituição e lenocínio infanto-juvenil. Depois, em reportagens sucessivas, abordou a situação das índias vendidas pelos pais. Teve repercussão na imprensa internacional. O procurador-geral da República se disse "chocado" e "perplexo" com as revelações. A foto foi comprada pela agência Reuters e distribuída para seus clientes em todo o mundo, mais de mil.

Não foi entretanto bem recebida no Pará, especialmente em Belém. O governador Jáder Barbalho não gostou. A imprensa, parte dela ao menos, questionadas. Recebi carta indignada do diretor de jornalismo da TV Liberal, Afonso Klautau, dizendo que a foto era uma "forçacão de barra e que era "claramente montada".

Aqui veio uma reflexão sobre os diferentes lados da atitude da imprensa paulistana diante da barbárie social que se espalha no país. Quem vive em São Paulo, vê em qualquer sinal de trânsito grupos de crianças abandonadas nas piores condições, pedintes esfomeados nas janelas dos automóveis, vê jovens dormindo nas calçadas, jogadores sob as marquises e viadutos. Embora o tráfico de jovens prostitutas não seja rotina, a realidade social da cidade mais rica do país não é, em muitos aspectos, tão diversa da existente na Amazônia.

Não é bem assim que a coisa aparece aos jornais. Ao descrever realidades mais distantes a imprensa sente-se mais à vontade do que ao retratar o caos local. Isso guarda certa similaridade com o noticiário da imprensa dos Estados Unidos sobre o Brasil, por exemplo.

Há uma tendência ao se colocara o problema m outro lugar, em restringi-lo à esfera alheia. E também mais fácil generalizar, carrega nas linhas dos títulos e legendas. Afinal, as fontes dessas reportagens em geral não tem acesso ao que se divulga, não se expressam.

O "Diário do Pará" de propriedades de Laércio Barbalho, pai do governados paraense, fez campanha para minimizar a repercussão política do Pará das reportagens de Dimenstein. Afinal, as eleições estão aí.

Mas, ao que parece, o jornal de Barbalho encontrou indícios jornalisticamente consistentes para pôr em dúvida a autenticidade da situação da foto. No dia 28 passado, o jornal publicou fotos e declarações de três passos que aparecem na foto: o engraxate Mozarino dos Reis Teixeira (de chapéu, sentado à frente do menino), o garoto A.M.M., e o vendedor de revisas Raimundo Ferreira dos Santos, que aparece ao fundo, também de chapéu.

Todos afirmaram, segundo o jornal, que a cena se trata de uma brincadeira entre feirantes, que colocaram cartazes na costas e os copos de plástico na cabeça da menina. A suposta prostituta, conforme os depoimentos, era na verdade uma mendiga bêbada que adormeceu. Ela não foi localizada nem identificada.

O jornalista Gilberto Dimenstein, que obteve de Paquini autorização para publicação da foto, sustenta que conhecia o fotógrafo e não via qualquer motivo para duvidar da veracidade da cena. Acusa o governo do Pará de articular uma campanha para desmoralizar a série de reportagens e livrar-se das responsabilidades pela omissão diante do problema.

O fotógrafo Paquini admite que pode ter sido vítima de uma brincadeira, mas acrescenta que a cena espelha uma realidade que não é rara nas cidades da região amazônica.

Para fazer a reportagem, Dimenstein viajou até à Amazônia com a fotógrafa Paula Simas. Mas nenhuma das fotos dessa viagem era tão sensacional quanto a de Paquini, feita fora do contexto e em uma outra época, com outros objetivos.

Quando editou a foto, a secretária de Redação da Folha sabia disso. O jornal, entretanto, divulgou a foto sem informar sua data nem o contexto da situação, descumprindo as normas do Manual de Redação. Atribuiu à menina a condição de prostituta, o que não foi chegado. Sequer sabia o nome dela. Não sabe até hoje. O caso, que está encerrado, deve suscitar, porém, reflexão séria a respeito da eficiência e do rigor no uso das técnicas de verificação de informações que o jornal transmite aos leitores.

ALTA E BAIXA

ALTA para a Folha e "O Estado" por terem finalmente estabelecido uma trégua na guerra de acusações que travaram pelas páginas dos dois jornais. Consta que houve uma troca de sinais de paz, proposta por interlocutores com transito em ambos os lados. Os interlocutores manifestaram preocupação pelo desgaste de imagem que a briga vinha causando aos dois jornais. A proposta de paz era simples: o fim do tiroteio de um dos lados acarretaria imediata cassação das hostilidades por parte do outro. Foi o que aconteceu. "O Estado" parou de atacar no domingo, 1º de março. A Folha, mansinha no domingo, calou-se de vez no dia seguinte. Ninguém sentiu saudade.

BAIXA para a Folha pela negligência com quem tem tratado o noticiário internacional. Há poucos meses, o jornal tinha um caderno diário para o assunto e exibia a maior rede de correspondentes no exterior. Agora, tem apenas uma ação reduzida -um apêndice no caderno Dinheiro-com noticiário superficial e orientado por prioridades que, por vezes, parece ceder ao apelo.


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