Folha de S. Paulo


A testemunha ocular

A Folha era o único jornal brasileiro presente em Caracas, a capital venezuelana alvoroçada pelo golpe de Estado que quase derrubou o presidente Carlos Andrés Pérez na madrugada de segunda para terça-feira passada.

Deslocado da Cidade do México para a Venezuela, o correspondente Emanuel Neri fora para lá com outras fundações. Desde a semana anterior ele acompanhava os desdobramentos do caso do avião de garimpeiros brasileiros que foi derrubado por militares venezuelanos.

Caía dos céus uma ótima oportunidade para que o jornal "furasse" os concorrentes. Sozinha, a Folha tinha a chance de enviar aos leitores um "olhar brasileiro" dos combates em Caracas.

Repetia-se o ocorrido quando da decretação da "união eslava", que levou ao fim da União Soviética, em dezembro passado. Só a Folha tinha correspondente em Moscou. É de se constatar porém que, como na primeira vez, o aproveitamento dessa vantagem da Folha foi decepcionante.

Ao noticiar o golpe, na edição de quarta-feira, a ênfase maior dada pela Folha não foi para as informações colhidas pelo repórter que acompanhava pessoalmente o desenrolar dos fatos.

O maior destaque, o texto que acompanhava a manchete do jornal, era um informe frio e burocrático, resultado aparente de um resumo de telegramas chegados de agências internacionais de notícias, se trocasse o nome do país, o texto poderia servir como notícia de qualquer gole militar no continente: "O governo (venezuelano) sufocou ontem uma tentativa de golpe de Estado no país. A revolta foi liberada por militantes insatisfeitos com a situação das Forças Armadas e as dificuldades que o país atravessa em virtude da prolongada recessão na economia."

Abaixo desse "cozidão" (jargão que denomina resumo de informações de várias fontes) vinha então com muito menor destaque, o texto em que o repórter Neri descrevia os combates em Caracas.

Poucos jornais do mundo, tendo um correspondente numa cidade convulsionada, trocariam suas impressões colhidas no calor do golpe por um relato das agências, supostamente objetivo, mas anônimo e gelado, cuja essência já tinha sido noticiada pelas televisões várias vezes no dia anterior.

Há no episódio a evidência de um certo desprezo que o jornal revela pela reportagem em horas decisivas. O Projeto Folha não tem entre seus principais méritos o da criação de uma "escola de reportagem" à altura da que criou, por exemplo, para o desenvolvimento de recursos de edição.

Quando de sua implantação, em 1985, as mudanças modernizantes do projeto foram atacadas pelos repórteres, que chegaram a liderar um abaixo-assinado contra ele na Redação.

Também por isso, a grande maioria dos profissionais que ocupam postos de comando superior na Redação fez carreira em tarefas de edição. Foram redatores ou editores, gente que cresceu "na cozinha do jornal", como se diz. Isso não impediu que a Folha viesse a ter excelentes repórteres ou que descobrisse os furos mais espetaculares nos últimos anos.

Mas a mentalidade preponderante tende sempre a ser de tipo defensivo, de desconfiança técnica, como se o jornal, antes de estimular a caça ao furo, estivesse sempre preparando as condições para escapar do erro de informação a ser cometido pelo repórter. Há também um certo exagero do uso de artifícios formais e de "análises" assinadas, recursos tipos de redatores e editores.

Disseminada, essa atitude gera um estranho retraimento dos repórteres, que raramente conseguem galgar postos de direção e impor sua cultura à forma que a Folha tem de fazer jornal. O outro lado da moeda é que vai se tornando cada vez mais rotineiro o desperdício de oportunidades para que o jornalismo da Folha tenha mais independência de enfoque, cor, novidade e impacto.

ALTA E BAIXA

BAIXA para a Folha, por ensinar em detalhes como fazer e fumar crack, no caderno Cotidiano do domingo passado.

BAIXA para o governador do Rio, Leonel Brizola, por tentar "virar a mesa" para impedir a TV Globo de transmitir o desfile das escolas de samba.

BAIXA para "O Globo", por dar destaque incomum à greve dos professores das escolas estaduais do Rio, como forma de atingir o governador Leonel Brizola, inimigo do proprietário do jornal, Roberto Marinho.

BAIXA para a Folha, por praticamente ignorar o noticiário sobre o novo Plano Diretor de São Paulo, um projeto da Prefeitura que pode alterar por inteiro a cidade.

BAIXA para a Folha, pela passividade que exibiu até ontem diante dos grandes aumentos do IPTU em São Paulo.


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