Folha de S. Paulo


O clic da sua vida

Na véspera do Ano Novo, alguns dos grandes jornais do país publicaram as fotos em suas primeiras páginas. Elas mostravam Felipe Batista da Silva, 28, ajoelhado, no momento em que encosta o cano da arma para atirar no pescoço do próprio pai, Clóvis Batista da Silva, que esta deitado no chão do parque da Redenção, no centro do Porto Alegre (RS). Chocante, dramática, trágica, sensacionalista, insustável, nada pode definir perfeitamente o sentimento transmitido pela foto.

Na Folha, o instantâneo, como se dizia antigamente no jargão jornalístico, sacudia a rotina sonolenta do noticiário dos jornais minguados do fim de ano. Sem trocadilho, a foto trazia informação viva. Trazia o que todas as audiências foram condicionadas a esperar dos jornais e que nunca têm. Como disse o historiador Daniel Boorstin, o homem do século -seus desejos formados pela propaganda, os meios de comunicação, os políticos- foi treinando para esperar demais do mundo. Dentre outras coisas, nós esperamos um novo herói a cada estação, uma obra-prima dramática a cada semana, uma rara sensação a cada noite.

Ao mesmo tempo em que esse carrossel de expectativas, a imprensa acaba sendo vítima dele. Os jornais em geral não têm condições de prover tal banquete diário de sensações únicas. Porque a vida real é muito mais lenta, os jornais têm que contentar-se com substitutos abastardados, reportagens requentadas em lugar de informações inéditas, personagens cinzentas em lugar de mentalidades brilhantes, entrevistas coletivas em lugar de acontecimentos reais, fotos posadas em lugar de um registro autêntico de algo espontâneo e real.

A foto do crime no parque da Redenção foi feita por Luciano Soares Abib, um fotógrafo free-lancer que passava pelo parque e ouviu um estampido. Olhou e viu a cena: o filho ajoelhado já apontava a arma para o pescoço do pai caído. Segundo declarações suas, reproduzidas pela Folha, o fotógrafo teria hesitado um pouco entre fazer as fotos e socorrer o homem ferido: "Mas vi que era uma história particular deles e senti que um fotógrafo tem aquele momento em que dá o clic de sua vida". O fotógrafo então clicou várias vezes. Felipe deu um segundo tiro, que atravessou a cabeça do pai, depois foi cercado por pessoas que presenciaram a cena, atirou a esmo, quase foi linchado e terminou preso. O pai morreu.

A declaração do fotógrafo gerou uma imediata reação. Enquanto todos assistiam a corrida de São Silvestre no dia 31, um leitor de São Paulo que pediu para não se identificar, ligou para mim para dizer que ficou estarrecido com a troca feita pelo fotógrafo. "Uma vida humana por uma foto". O leitor dizia que não podia aceitar uma tal inversão na valorização das coisas e perguntava: Qual é a escala de valores da Folha? O que prevalece, a notícia ou a vida humana? O leitor, de formação universitária, acrescenta que ficaria feliz se soubesse que a foto não havia sido feita para que uma vida fosse sala. Ele protestava porque não encontrara nenhuma opinião do jornal, dizendo o que seria correto fazer em uma situação como essa.

Como é hábito em casos de protestos de leitores contra a Folha, procurei ouvir a opinião da Redação sobre o caso. Recebi a seguinte reposta do diretor da Redação, Otávio Frias Filho: "Penso que se trata sempre, nesses casos, de opção pessoal do repórter, que é um fotógrafo free-lancer do Rio Grande do Sul".

Em sua resposta, Frias Filho não quis firmar uma posição geral sobre o assunto. Ocorre que a meu ver essa posição mais abrangente já existe, ao menos em espírito, no "Manual Geral da Redação" da Folha. Ela está no polêmico verbete "Razões de Segurança", o mesmo que dá base para que o jornal não publique notícias de sequestros em andamento: "Em casos excepcionais... (a Folha) pode decidir não publicar informações cuja divulgação coloque em risco a segurança de um ou mais pessoas..."

No caso concreto, a vida de uma pessoa estava em risco. Se a realização da foto implicava na permanência do risco à vida dessa pessoa, a atitude recomendável seria optar por não fazer a foto e ajudar a vítima. Isso em tese, porque no crime do parque da Redenção a opção entre fazer a foto ou ajudar a vítima nem existia, a não ser que o fotógrafo expusesse sua própria vida às balas de uma pessoa disposta a tudo. Mesmo que quisesse, ele dificilmente poderia se aproximar sem ser ele mesmo alvejado.

O mais importante porém é destacar a ética humanista presente no "Manual", o que não tem merecido atenção devida dos que questionam os princípios éticos da Folha.

ALTA E BAIXA

BAIXA para a Rede Globo de Televisão, por manipular com intenções políticas o noticiário contra Alceni Guerra, o ministro da Saúde. Alceni é um dos responsáveis pela aproximação entre governo Collor e o governador do Estado do Rio, Leonel Brizola, inimigo de Roberto Marinho, o dono a Globo. Exemplares de pautas de reportagens da Globo, divulgadas pela assessoria do ministro da Saúde, contêm várias recomendações no sentido de que o ministro não fosse ouvido nos telejornais da emissora. O veto valia até nos casos de reportagens em que o ministro era acusado de irregularidades. Os escândalos no Ministério da Saúde devem ser condenados, mas igualmente execráveis são as práticas jornalísticas destinadas a manipular seu noticiário com fins políticos.

BAIXA para "O Estado de S. Paulo", por publicar arbitrária votação com "cronistas esportivos" que escolheram os melhores do ano passado no esporte. Entre os que votaram nos "melhores do ano" não havia nenhuma jornalista da Folha, "O Globo", TV Bandeirantes ou do "Jornal do Brasil".

BAIXA para a Folha, por descuidar demais do tamanho e do nível das edições de fim de ano. O resultado é que o jornal sofreu muito em termos de qualidade. Das 55 reclamações telefônicas e por fax encaminhadas ao ombudsman entre os dias 27 de dezembro e 2 de janeiro, 35 (63%) eram sobre assuntos relacionados com a compressão do espaço as seções ou sobre a supressão temporária de algumas delas.

RETRANCA

Ao contrário do que pode ter dado a entender um texto publicado dia 8 de dezembro nesta coluna, em, "A Média da Mídia", a Agência Universitária de Notícias da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo não tem qualquer responsabilidade na redação ou publicação de reportagem que noticiava como tendo acontecido um festival de música -promovido pelo Centro Acadêmico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito da USP- que havia sido adiado em razão de temporal. A responsabilidade é toda do jornal que a publicou.

Eu estarei ausente até o dia 12 de janeiro, por motivo de viagem. Esta coluna voltará a ser publicada no domingo dia 19 de janeiro.


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