Folha de S. Paulo


A imprensa, os florais e o lumbago

A cobertura de assuntos médicos é, ao lado da economia, aquela para a qual a mídia deveria reservar as maiores doses de seriedade e rigor. Distorções são graves nas duas áreas, mas é diante da informação médica que os leitores acham-se menos aparelhados para fazer julgamento distanciado.

Na última quinta-feira, o caderno Cotidiano da Folha publicou reportagem tentando consertar uma outra, publicada onze dias antes. A primeira reportagem, do dia 24 de novembro, saiu em alto de página, com título em seis colunas e enunciado temerário: "Médico evita cirurgia e cura hérnia de disco" (o grifo é meu).

O médico em questão é o doutor Haruo Nishimura, um ortopedista conhecido por ter tratado do general João Figueiredo, ex-presidente da República.

Abaixo do título sobre a "cura" para a hérnia de disco, o jornal publicou o texto da reportagem, acompanhado de uma foto do doutor Nishimura, em plena atividade curativa com um paciente. Ao lado do texto e da foto foi editado o que se chama na Redação de "material de apoio" para o texto principal: uma ilustração de tom pretensamente científico chamada "Como é a hérnia de disco" e um texto dentro de um quadro com o título "Clientes contam sua recuperação". O figurino manipulatório estava completo.

Tudo combinava muito bem para elevar a fé e também para arrasar o jornalismo. A afirmação do título da Folha de que Nishimura e seu método (do qual faz parte uma "ajeitada" feita com as mãos na coluna do paciente) representam a cura para a hérnia de disco contribui para, entre os leitores que têm familiaridade com a medicina, destruir a imagem de que o jornal seja moderno e objetivo.

O jornal contrariava as determinações de seu Manual de Redação, que recomenda que em todas as reportagens se ouça o outro lado, ou seja, que no caso fossem consultados médicos independentes para checar eficácia do "tratamento" de Nishimura.

Num procedimento raro entre membros da elite médica, que geralmente limitam suas polêmicas aos integrantes do establishment da profissão, Ferraretto contestava todas as informações da reportagem, e em especial a contraposição entre o tratamento de Nishimura e a cirurgia. Chegou a classificar Nishimura de "leviano" e "pilantra".

A reportagem pró-Nishimura na Folha combatia as cirurgias de hérnia de disco. A carta de Ferraretto dizia que estudos internacionalmente aceitos indicam que essas cirurgias não chegam a ser feitas em mais do que 3% dos casos de pacientes com dor lombar. O lumbago, como também a dor é chamada, registra em geral grande melhora com repouso, calor local, analgésicos e antiinflamatórios, seguido de exercícios. A cirurgia, dizia Ferraretto, só é indicada em casos extremos, quando existe alterações dos reflexos e perda de força nas pernas.

Não cabe aqui opinar sobre quem está com a razão. Cabe apontar a gravidade de o jornal relaxar seus procedimentos técnicos a tal ponto de servir de mera reprodução do diz-que-diz mistificador e de se tornar veículo ativo para a fama de um médico cujas técnicas parecem a muitos como artifícios dignos de um Uri Geller da coluna vertebral, dono de mágicas manipulações que desentortam qualquer problema.

A Folha mantém um profissional para assessorar em casos como esse: o dr. Julio Abramczyc, contratado em 1960 como chefe da Seção de Biologia e Medicina e que hoje é o profissional que está há mais tempo na redação. Inexplicavelmente, o dr. Abramczyc não foi consultado pela Redação.

O mal não ataca só a Folha. No dia 20 de novembro passado, também o jornal "O Estado de S. Paulo" publicou reportagem relatando milagres maravilhosos dos "Florais de Bach". Ao uso dessas essências, no texto publicado pelo concorrente da Folha, estaria associado até o fato de um estudante ter sido o primeiro colocado no vestibular.

A imprensa, já se viu, vive em parte da arte de criar mitos e também de destruí-los. mas quando a mitificação sai do terreno das idéias ou da luta política em geral para aderir à propagação de práticas que podem ser curandeiristas, ajudando a iludir a sua fé e pondo em risco a saúde dos incautos é o caso de se pedir um pouco mais de responsabilidade.

ALTA E BAIXA

ALTA para o jornal "Correio Braziliense", que revelou o escândalo das bicicletas envolvendo a compra de mais de 23 mil bicicletas pelo Ministério da Saúde a preços 50% maiores que os de mercado. Houve época em que esse tipo de furo era dado quase que exclusivamente pela Folha.

BAIXA para "O Estado de S. Paulo", que anunciou com estardalhaço a instalação de novas máquinas, mas ficou no meio do caminho. O novo sistema de impressão não é suficiente para imprimir o jornal inteiro. Resultado: alguns cadernos, como o de Economia, são impressos no antigo sistema, o que lhes dá um ar ainda mais ultrapassado.

ALTA para o jornal norte-americano The New York Times", que lançou novas tintas de impressão para diminuir em até 60% a quantidade de tinta que borra as mãos dos leitores. Dá inveja.

ALTA para a revista gay de Los Angeles "Advocate", que revelou que o porta-voz do Pentágono é homossexual. O objetivo da publicação foi chamar a atenção para a atitude contraditória da instituição, cujos líderes descriminam os homossexuais na tropa, mas calam-se sobre a existência deles em postos de destaque no próprio Pentágono. Se a moda pega...

A MÉDIA DA MÍDIA

O "Jornal do Sul de Minas" e outros jornais do interior publicaram reportagem sobre um festival de música organizado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Em razão de fortes chuvas ocorridas no dia 5 de outubro, o festival teve que ser adiado. Mas mesmo assim a reportagem, produzida pela Agência Universitária de Notícias da Escola de Comunicações da USP, foi publicada, como se o festival tivesse ocorrido.


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