Folha de S. Paulo


A segunda morte da URSS

Pela segunda vez neste semestre a Folha mostrou grave apatia diante de fato de especial importância do noticiário internacional. Nas duas ocasiões o foco das informações era a União Soviética. As duas crises ocorreram num domingo. Deveriam ser noticiadas na segunda-feira.

O primeiro fracasso ocorreu em agosto, durante o golpe contra o presidente Mikhail Gorbatchev. Naquela ocasião, o jornal tinha condições, mas por uma incrível sequência de decisões desastradas deixou de registrar a queda do líder soviético.

A segunda aconteceu no domingo passado. Enquanto São Paulo e Corinthians faziam o primeiro jogo da final do campeonato, os presidentes da Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia decidiam sobre assunto bem mais sério. Eles resolveram, juntos, afrontar o Kremlin. Declararam a extinção da União Soviética. Criaram uma "união eslava", constituída apenas pelas três repúblicas.

O jornal noticiou a histórica decisão com uma chamadinha seca e incompleta na parte de baixo da capa de segunda-feira passada, em fazer sequer uma remissão para noticiário interno, inexistente no que se referia à extinção da URSS.

"O Estado de S.Paulo", o concorrente direito da Folha, deu o assunto na manchete de capa. O mesmo fez o "New York Times" e a grande maioria dos jornais importantes do mundo. A Folha inexplicavelmente deu manchete para um plano do governo Collor, a renegociação da dívida dos usineiros.

As notícias vindas da URSS tinham importância óbvia. Estavam acontecendo naquele momento a desintegração política do maior país do planeta, o ultranacionalismo eslavo renascia com força, agravava-se o perigoso turbilhão que sacode a superpotência atômica. Para a Folha, havia um sabor todo particular.

Desde o golpe de agosto, o jornal cismou de chamar a URSS de ex-URSS, o que causou estranheza entre leitores, risos de jornalistas de outras publicações e recebeu até crítica do então ombudsman Caio Túlio Costa. Com os acontecimentos de domingo passado, a Folha podia respirar aliviada. Era só usar o advento da união eslava como demonstração de que o jornal acertara desde o início. Mais uma vez o jornal poderia sair de uma situação isolada e idiossincrática para alardear que mais uma vez estava com a razão, e lembrar a todos que esfacelamento não constituía novidade apenas para ela, a Folha.

Foi o que o jornal fez, mas com um dia de atraso, na edição de terça-feira, quando dedicou três páginas para o assunto. Mas nesses dias não deu manchete de capa. Seria talvez reconhecer o lapso da edição do dia anterior.
É importante analisar por que o jornal errou no domingo. O correspondente em Moscou, Jaime Spitzcovky, estava em cima do assunto. Alertou a Redação para a possibilidade de que surgissem importantes desdobramentos de última hora. Ocorre que muitos cadernos do jornal estão submetidos a horários industriais de fechamento tão antecipados que provocam graves prejuízos à temperatura jornalística das reportagens editadas. No domingo, o caderno Mundo fechou seu primeiro clichê às 15h, o que significa que o leitor recebe na manhã do dia seguinte um produto sem atualidade.

Mas por que então o fim da URSS não foi editado como notícia de última hora no caderno Brasil, que podia incluir material quente até a madrugada de segunda-feira? Por que não foi a manchete do jornal? A Secretaria de Redação do jornal não dá argumentos aceitáveis. Todos baseiam-se no eventual atraso para a distribuição que uma alteração do que fora planejado poderia trazer. O raciocínio é coerente pois ele dá base para uma sequência de decisões editoriais equivocadas. O jornal planejara que São Paulo e Corinthians seria o assunto do dia. Para isso tudo foi preparado. O restante até a própria manchete era secundário. Em princípio era plausível a prioridade dada ao jogo. Entretanto, o planejamento tem o seu papel em qualquer atividade, inclusive no jornalismo, desde que dele não se espere demais. Ele não pode ser mitificado ao ponto de virar um totem onipotente. Executivos do jornal são pagos para alterar o planejado. Notícia importante deve ter sempre prioridade sobre qualquer planejamento.

A submissão burocrática a esquemas intocáveis de planejamento, a criação de horários de fechamento excessivamente frios e o privilégio dado a temas de pouca importância real têm contribuído, a despeito de possíveis sucessos comerciais, para tornar a Folha um jornal cada vez menos jornalístico, ou seja menos atual e influente.


Endereço da página: