Folha de S. Paulo


Piche a apareça

A pichação do Cristo Redentor fez as manchetes da semana. Em circunstâncias "normais", o assunto não mereceria consideração. O público já está acostumado ao vandalismo.

Basta dar uma volta na rua para perceber como a sociedade mostra-se impotente e passiva diante das pequenas mas incômodas transgressões que se multiplicam. A falta de auto-estima está impressa nas paredes. Ninguém parece importar-se mais com tanta feiúra.

Mas a pichação do Cristo teve características exclusivas. O alvo foi o monumento mais conhecido do Brasil: um símbolo religioso, marco turístico, orgulho do Rio. Os pichadores, paulistas, foram presos, o que forneceu abundante material para a mídia. Logo se abriu campo para a celebração do bairrismo anticarioca e vice-versa, para a disfarçada idolatria dos jovens porcalhões e sua audácia sem limites.

Após um momento inicial de perplexidade e repulsa, os pichadores surgiram, com a ajuda inocente ou levianamente descompromissada da imprensa paulista, como grandes heróis a autografar calcinhas de fãs em delírio.

O caderno de Cotidiano da Folha, que se encarregou da cobertura do assunto, não fez o elogio aberto dos pichadores. O jornal procurou passar uma atitude "neutra" ao noticiar a pichação. Mas nesse caso a suposta "objetividade" jornalística acabou sendo uma cortina a ocultar uma simpatia positiva e uma expectativa cinicamente divertida frente à corrida entre gangues para ver quem suja mais.

Em editorial, a Folha repudiou a "estúpida disputa". Nas páginas de noticiário, o jornal como que lavou as mãos. Na prática, incentivou a competição: "COMEÇA A GUERRA DO SPRAY", dizia a manchete de Cotidiano em letras maiúsculas na quarta-feira. o título interno completava: "Gangue paulistana promete barbarizar o Rio". Na quinta, o título avançava no provincianismo: "Gangues protegem teatro do picho carioca", referindo-se a ameaças contra o Teatro Municipal. Na sexta, a glória: "Pichador autografa calcinhas de meninas".

Quando se noticia uma disputa entre delinquentes com tal estridência e "neutralidade", o noticiário deixa de ser um registro isento dos fatos para se tornar um estímulo para que a porcaria se repita. Aparecer no jornal passa a ser o maior objetivo da transgressão. Mas o que fazer? Parar de noticiar? Claro que não. O jornal, porém, precisa se policiar, refrear ímpetos sensacionalistas, perseguir a isenção de uma forma ativa. Editores têm inúmeros recursos à disposição para manifestar condenação nas páginas do jornal sem que o noticiário perca a objetividade. Basta querer usar esses recursos ao elaborar os títulos, eleger as fotos em destaque ou os personagens em evidência.

Não foi o que a Folha fez. Tal atitude não começou agora. Há cerca de um mês, a Folha pôs na Primeira Página um placar mostrando há quantos dias o Teatro Municipal não era pichado. O incentivo era evidente.

Manipular o noticiário é um deslize que pode assumir diferentes feições, ao sabor das circunstâncias. Uma delas, já abordada, é dar importância a fatos que não são relevantes. Outra é borrifar com neutralidade uma cobertura cuja meta é faturar o interesse em torno da egotrip de pivetes obcecados pela fama a qualquer preço.

ALTA E BAIXA

ALTA para a Folha, que atinge com a edição de hoje a tiragem de mais de 563 mil exemplares . O terceiro recorde consecutivo aos domingos.

BAIXA para a "Veja São Paulo", que festejou em reportagem de capa há quinze dias as maravilhas do trabalho de Augusto Nunes no comando do projeto de reformulação de "O Estado de S. Paulo". Mas enquanto a reportagem era produzida, Nunes já tinha fechado sua mudança para a "Zero Hora" gaúcha, o que a "Vejinha" não publica. Uma semana depois da edição elogiosa a Nunes, a revista teve que fazer nova reportagem acrescentando informações para tentar explicar porque Nunes saíra do jornal paulista.

BAIXA para a Folha, que na edição de domingo passado, afirmou que o município de Adolfo, em São Paulo, corria o risco de sumir do mapa. A cidade perdeu, de fato, 10% da população em dez anos, o que é considerado normal e não dá margem a que se preveja a extinção daquela comunidade. Mas o prejuízo já foi feito.

BAIXA para a Folha, que noticiou erradamente que a Prefeitura tinha vendido como ração um lote de mais de cem toneladas de alimentos em boas condições de consumo. Segundo a Secretaria de Abastecimento, o Instituto Adolfo Lutz constatou que o lote tinha na verdade 84 toneladas e, dessas, apenas um balde de 2kg de purê de alho não estava com prazo de validade vencido. Até sexta-feira passada, o jornal não fizera nova checagem da informação que publicara, apesar de vários pedidos das autoridades. O prato preferido de jornalista é o governo. Seja qual for e como for.


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