Folha de S. Paulo


Análises frívolas sobre 1968 falam de minissaia & pop & pílula

Bruna Barros/Folhapress

A aliança da Praça dos Três Poderes com a Avenida Faria Lima foi soldada com uma liga troncha: desmonte de direitos e manutenção de regalias. O povo, traído e vencido, ficará passivo até quando?

É difícil que ele se subleve no ano que começa amanhã à meia-noite. Porque a economia melhorou e se votará para presidente. Eleições servem para tirar o fusível queimado, para que se atarraxe outro no soquete e a energia volte. Mas como o país está em pane, pode haver curto-circuito.

Mais de um século antes que se teorizasse a permanência dos Estados de exceção, Nietzsche a intuiu: "A loucura é algo raro nos indivíduos –mas em grupos, partidos, povos, épocas, é a regra".

Na demência do presente, 2018 pode vir a ser um relâmpago de sanidade. Como 1968.

Aquele ano trepidante, agora tiozinho cinquentão, se presta a toda sorte de interpretações. As análises frívolas falam de minissaia & pop & pílula. As antropológicas enfatizam fenômenos juvenis, de matriz californiana ou londrina, que se irradiaram pelo Ocidente.

A tendência, a ser confirmada pela penca de livros que vem aí, é depreciar os colapsos do stalinismo em 1968 –Primavera de Praga; Revolução Cultural na China; guerra de libertação no Vietnã; fiasco das guerrilhas de inspiração cubana na América Latina.

Um livro que dê conta disso tudo é empreitada para poetas. Foi o que faz o alemão Hans Magnus Enzensberger em "Tumulto" (não publicado no Brasil). Seu livro é um diálogo com suas experiências nos anos 1960. E que experiências.

Ele era casado com uma norueguesa, tinha uma filha e vivia parte do ano com elas num fiorde, perto de Oslo. Aí veio o tumulto. A esquerda berlinense se fortaleceu em manifestações anarquistas e choques brutais com a polícia, algumas delas organizadas por Enzensberger.

O poeta emprestou seu apartamento ao irmão, que fundou ali uma célebre comunidade libertária, a Kommune Um. Passou meses na URSS, esteve na "datcha" de Krushev e o viu explicar o socialismo a Sartre. Apaixonou-se por Masha, filha de dissidentes e estudante de literatura.

Separou-se da norueguesa e casou com a russa. A moça detestou Berlim e se mudou para Londres. Enzensberger foi para o Camboja. O casal voltou a ficar junto e morou um ano em Cuba. Viviam às turras. Masha, ele veio a descobrir, tinha transtorno bipolar.

Enzensberger escreveu diários durante seu périplo e os perdeu. Reencontrou-os décadas depois, num porão. Como "Tumulto" os transcreve, ele tem a urgência, a improvisação e o calor dos anos 1960.

Há vinhetas notáveis. Como a de Neruda, mantido pela União Soviética em hotéis de luxo. Ou a de Allende no Taiti, onde o senador resgatava sobreviventes da guerrilha de Che na Bolívia. Ou a de Kissinger, que odiou os comentários de Enzensberger sobre o seu sotaque.

Ou a de Marcuse, com quem discutiu o "homem unidimensional" enquanto tomavam drinques à beira de uma piscina na Califórnia. Ou a de Ulrike Meinhof e Andreas Baader –a quem chama de "trapaceiro abominável"–, que formariam um grupo terrorista.

Enzensberger circula entre o capitalismo, o stalinismo e a nova esquerda. Entre Leningrado e Phnom Penh, entre Paris e Havana. Entre militantes e burocratas. Entre a história de um tumulto e o tumulto de um homem.

No coração do livro, o vai e vem se dá entre o poeta impetuoso de 1968 e o intelectual sábio de hoje. Enzensberger faz isso por meio de uma conversa imaginária entre o velho e o jovem.

O escritor tem 88 anos, mas não é um rabugento cheio de certezas. O moço, por sua vez, não era nem um pouco ingênuo.

O diálogo entre eles é dialético. A bola branca repica e cria sinucas impossíveis, o adversário as supera e parte para novas sinucas. "Tumulto" dá forma literária a virtudes de 1968: criatividade, audácia, alegria, risco. São virtudes moribundas num país entorpecido, o Brasil de 2018.


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