Folha de S. Paulo


Jô e Fernanda Torres ralaram antes de revelar algo do seu meio em livros

Bruna Barros/Editoria de Arte/Folhapress

Como os livros que caem nas graças do grande público costumam ser mistificações bem comportadas, a intelectualidade inconformada —a refratária à mercantilização— não se interessa por eles. São obras pasteurizadas e anódinas, diz-se, oba-oba de celebridades.

Embora a indústria cultural fabrique em série produtos que automatizam reações e emoções, entorpecendo a plateia, alguns dos seus profissionais aspiram à autonomia. Silenciar sobre o que eles fazem fora da linha de montagem é conformismo, mas mascarado de pureza.

Veja-se "O Livro de Jô" e "A Glória e seu Cortejo de Horrores", de Fernanda Torres. Seus autores pesquisaram e entrevistaram. Imaginaram formas para expor o ofício de representar. Ralaram antes de se atreverem a revelar algo do seu meio. Não foram fúteis. Fizeram literatura.

Apesar do livro de um ser de memórias, e o da outra de ficção, ambos têm o próprio entretenimento como solo. O de Jô serpenteia caudalosamente, não cabe em si, extravasa. Com uma cronologia frouxa, volta atrás, muda de assunto, acrescenta casos inacreditáveis.

"O Livro" até parece ficção, por flagrar uma opulenta inundação humana. É preciso esperar o segundo volume para aquilatar o seu sentido último. Na primeira parte, contudo, viver é isso: vida. Tumulto irrefreável de acasos, exuberante enxurrada de gentes, ela flui com formidável força.

Sem Jô, essa abundância se perderia no turbilhão do tempo. Ele diz que é exibido; quis atenção, aplausos, risos. Sua gorda empáfia, todavia, se orienta no sentido de apreender os outros, aqueles por quem tem afeto: seus colegas, seus amigos, seus pais, suas amantes, seu filho.

É uma tentativa quimérica, e por isso mesmo tocante, de evitar que esse povo todo escorra para o ralo do esquecimento. A busca é bem lograda porque "O Livro de Jô" adotou uma forma literária feliz, oriunda de um passado arcaico, que precede a escrita, mas que dela se beneficia.

Fruto de longas entrevistas ao editor Matinas Suzuki Jr., retrabalhadas até serem liquefeitas num texto fluvial, "O Livro" retém a oralidade de quem conta casos. Tal e qual o narrador-viajante de Walter Benjamin, Jô se aventurou em múltiplos afazeres e conheceu tipos preciosos. Agora, passa as suas fábulas adiante com uma dicção encantatória.

Já em "A Glória", a vida é isso: um cortejo de horrores. À maneira dos romances clássicos, seu herói busca algo que não sabe o que é. Não tem nada de calmo ou sábio; é brutal, insatisfeito, solitário. Até a glória é maldita: restringe-se ao dinheiro que lhe dissolve a arte.

Mario Cardoso é um estudante que vai fazer teatro político na ditadura. Rejeitado pelo povo, adere à contracultura odara. Interpreta grandes papéis e pega uma rebarba do cinema novo. Vira ídolo da tevê, tenta o teatrão oficial e afunda numa novela bíblica.

Essa encrenca permanente é narrada com requinte e referências. A cada passo teatral de Mario, um autor se insinua no estilo de Fernanda Torres. Há Brecht no episódio do engajamento. Tchékov, no fluxo da consciência. Plínio Marcos, no neonaturalismo marginal. Beckett, na anomia do caos.

O Livro de Jô - Uma Autobiografia Desautorizada (Vol. 1)
Jô Soares, Matinas Suzuki Jr.
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A complexidade cultural é contraposta à crueza do Brasil. A nação é feita de espoliação em Pernambuco; tédio na Tijuca; estupor na Lapa; ladroeira em São Paulo; cinismo na Barra; miséria religiosa na cadeia —e é nela que Mario revive sua epifania com o teatro.

O humor de "O Livro" é carinhoso e seduz. O de Fernanda critica os personagens e força a pensar o teatro brasileiro de hoje. Um "Macbeth" de verdade, diz o seu romance, talvez só mesmo num presídio.

Nem sempre foi assim. Na aurora da indústria cultural, tão bem lembrada por Jô, o cálculo (do patrocínio, do ibope, do retorno financeiro) não se apossara da sua alma. Ainda. Isso veio a ocorrer nos anos de "A Glória".


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