Folha de S. Paulo


Bach diria que a cracolândia é uma ilha no mar da civilização?

Bruna Barros/Editoria de Arte/Folhapress

Quarta-feira, 2 de agosto: depois de um debate sobre racismo, e de jantar no Sujinho, o escritor Paul Beatty quis ir ao recanto que, para gáudio geral, chamou de "crackland". O pouco que temos a oferecer aos turistas está concentrado: cruza-se a cracolândia para entrar na Sala São Paulo.

O jardim das delícias paulistano lembrou a Paul Beatty a Los Angeles dos anos 1980. Foi quando o crack estourou nas quebradas negro-latinas e do white trash. Agora, a onda lá são os opiáceos. Somos atrasados até no vício.

Terça, 8 de agosto: "O Cravo Bem Temperado", daqui a duas semanas, será o concerto do ano da Sala São Paulo. O pianista András Schiff é hoje o grande intérprete de Bach. Dizem que toca o "Cravo" de memória e sem pedal de apoio. O ingresso custou 200 paus. E era meia.

Sábado, 19: no dia do patrimônio histórico, é permitido aos bugres visitar o palacete do barão Carlos Leôncio de Magalhães, em Higienópolis. Embora o cafeicultor tivesse o brejeiro apelido de Nhonhô, seu casarão não inspira leveza, e muito menos leviandade.

Ele mescla o que há de funesto em adereços arquitetônicos, de capitéis jônicos a entalhes de jacarandá. A feiura converge para uma capelinha manuelina onde se celebrava a suruba de commodities e contrarreforma. É um monumento pio à incultura do café, um mausoléu da civilização estéril.

Domingo, 20: aniversário de Roberto Schwarz, cujo "As Ideias Fora do Lugar" saíram há 40 anos. O ensaio situa a estética periférica na circulação mundial de mercadorias. O atraso da ex-colônia só é superado em arte, com Machado. Na sociedade, não: o relho de Nhonhô ainda nos lanha o lombo.

"As Ideias Fora do Lugar" sobreviverá à atual regressão? Haverá no mês que vem um seminário na USP a respeito do ensaio, o que é sinal da sua pertinência. Mesmo na pizza de aniversário, porém, gênero e cor permeiam os papos, tomam o lugar da dialética, das classes e da arte.

Segunda, 21: "Lady Macbeth" adapta um romance meio machadiano do século 19 que, por sua vez, recria na Rússia periférica a personagem maior de Shakespeare. No original, a luta pelo poder move a trama. No filme, a feminilidade de Madame e a cor do seu amante perenizam a ação.

Terça, 22: "O Cravo Bem Temperado" valeu cada real. Schiff de fato tocou de cor, e com o pé direito pregado no chão, durante duas horas. Os 24 prelúdios e 24 fugas iluminaram o presente com seu mistério.

Mistério que começa pelo título: "Cravo" deveria ser traduzido por "Teclado" –do clavicórdio, do órgão e do cravo. Mas não do piano, o instrumento em que é tocado. "Temperado" refere-se à afinação, a uma querela matemática que remonta a Platão.

Bach foi tido por piegas e rato de sacristia. Mas Glenn Gould disse que ele já era arcaico há 300 anos. Para Adorno, sua música encarnou a dissonância, em trânsito do sagrado para o profano, da igreja medieval para o teatro burguês.

Madrugada de quarta, 23: Bach diria que a cracolândia é uma ilha no mar da civilização? Que a Sala São Paulo é uma fortaleza sitiada? Quem seriam para ele os insensatos –a plateia perfumada ou os noias andrajosos?

As Ideias Fora do Lugar
Roberto Schwarz
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Dentro da sala, a plateia lavara o cabelo com xampu e se untara com cremes. Entendia a matemática da música e se enternecia quando Schiff prolongava uma nota. Éramos herdeiros de Nhonhô, disfarçando a opressão com adereços barrocos.

Lá fora, the crackland era um acampamento de refugiados à lá Bosch: grávidas acocoradas na frente de fogueiras, adolescentes mirrados enrolados em parangolés, pichações no corpo, tatuagens na alma, a harmonia infernal da fuga.

Anteontem, 24: Não havia no centro de São Paulo nem gêneros nem raças; nem classes conscientes nem minorias rebeldes. Era uma madrugada normal, uma caralhada de doidos de pedra na fissura do crack bem temperado.


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