Folha de S. Paulo


Líder das bancadas do bife, Temer não cai por causa de sua hegemonia

Ilustrada Bruna Barros

Por que o presidente não cai? Motivo haveria: flagrantes gráficos de patifarias, com áudio e vídeos sulfúricos; aumento de impostos; 13,5 milhões de desocupados; destruição de direitos de quem trabalha; degradação do Estado; índices de rejeição jamais vistos.

Drácula mal pode sair da tumba planaltina, tal o desprezo que inspira. Para as câmeras, insiste na burlesca dança de dedos, na retórica ridícula de rábula provinciano, no esgar de autossatisfação demente. Sorrindo, oferece mais do mesmo infortúnio. E não cai. Por quê?

Porque ele é um hegemon, palavra que nem o Aurélio nem o Houaiss registram. Um caminho suave para entender o seu significado é "The H-Word", fascinante exercício de filologia histórica que acaba de ser publicado no Reino Unido.

O livro de Perry Anderson capta o nascimento da noção de hegemonia e a acompanha por nove culturas, da Grécia do século 5º a.C. à China de hoje. O Brasil aparece numa só frase, que fala de "financeirização, especulação patrimonial e mania por produtos de luxo".

Estudar a hegemonia não é futilidade de eruditos, ainda que o livro seja farto –mas fluido– em referências históricas, filosóficas e políticas, feitas em meia dúzia de idiomas. Anderson descobriu que "hegemonia" aparece no título de cinco livros lançados nos anos 1960.

A progressão foi geométrica desde então. Na década seguinte, foram 16 títulos. Na primeira década e meia do século 21, surgiram 161 livros com hegemonia na capa.

Criado por Aristóteles, o conceito cada vez mais se aplica ao mundo atual.

No Ocidente, ele originalmente serviu para descrever a aliança de cidades-estados gregas contra a invasão persa. Uma entre elas era escolhida para o papel de líder, a hegemonia –a liderança baseada no consentimento e no consenso.

O caráter militar da aliança fez com que a concordância derivasse para o exercício da autoridade: na guerra, ordens são ordens. E havia a hegemonia interna às cidades, oscilando entre democracia e ditadura. Uma coisa era o hegemon ser de Atenas; outra, de Esparta.

Há uma continuidade entre convencimento e coerção. Entre a escolha do mais capacitado para ser hegemon e a força que ele aplica para submeter os recalcitrantes. De Confúcio a Maquiavel e a Gramsci, os teóricos da hegemonia registram a ambivalência.

Veja-se o domínio americano. Ele é "hard power" porque os EUA detém o maior poder militar do mundo. É "soft power" porque Hollywood, seriados, hip-pop & rap, jogos eletrônicos, modas e modos de vida são cobiçados globalmente (e ambos os poderes desembocam na expansão do capital).

A China foi o único país do mundo que teve a hegemonia como pedra angular da sua política, a ponto de Mao botá-la na Constituição. Foi ele quem definiu que o país deveria liderar a aliança contra os Estados Unidos e a União Soviética. Deveria ser hegemônica entre os pobres.

Tal sentido foi sepultado pelas reformas capitalistas que vieram depois. A China não quer mais hegemonia. Quer ter poder em todo o mundo. Pela primeira vez no comércio entre os países, no ano passado a China comprou 25% de todas as exportações brasileiras, quase tudo em matérias primas –soja, minério de ferro, petróleo.

Há apenas dez anos, os Estados Unidos eram nosso maior comprador. Hoje é a China. É simplismo, pois, ficar deblaterando contra o imperialismo ianque, ainda que ele exerça o poder incontrastável sobre nós. Porque o mundo e o Brasil ficaram mais complexos.

A hegemonia de Temer é produto dessa nova configuração. Ele é líder das bancadas do bife, da bala e da Bíblia. Ou seja, expressa as necessidades do agronegócio, da indústria do armamento e das igrejas-empresas evangélicas.

Talvez até dos interesses do Partido Comunista da China. Aliás: os Brics não fizeram nada contra a derrubada de Dilma.


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