Folha de S. Paulo


Inócuo, 'Soundtrack' abandona identidade nacional para ser arte

Bruna Barros/Editoria de Arte/Folhapress
Bruna Barros de 15 de Julho de 2017

"Soundtrack" é uma bobagem. Ninguém melhora ou piora por ver o filme. Apesar de inócuo, ele serve para tomar a temperatura do cinema brasileiro hoje: o paciente está abaixo de zero. Com esse título, falado em inglês e ambientado no Ártico, "Soundtrack" é um legítimo filme nacional. Foi feito em Jacarepaguá.

Essas coisas devem ser vistas sem preconceito. Para dizer algo do Brasil de hoje, um filme não precisa se passar em Miami, tocar funk sertanejo e festejar o triunfo da democracia. Às vezes, quanto mais longínqua a fantasia, no tempo e no espaço, tanto mais ela fala à gente de agora e daqui. Arte é imaginação livre.

Em sendo assim, "Soundtrack" optou por um sistema de cotas generosamente machista. São cinco marmanjos na tela –um dinamarquês, um chinês, um inglês e dois brasileiros, um deles negro e o outro branco. Mulher, que é bom, nenhuma.

Com um enfado contagiante, os gajos vivem numa terra de ninguém descolorida, o polo. Confinados em contêineres, de dia fazem pesquisas monótonas. À noite, bebem. Sua vida é tédio na veia.
O último a se agregar à chatice exasperante é o fotógrafo Cris (Selton Melo, coitado).

Ele é um artista que tira selfies –fora de foco e contra um fundo indefinido– para exibi-los depois ao som de músicas sem ritmo. Incompreendido, é hostilizado. Mas o iluminado persiste com santa teimosia. Afinal, é fotógrafo porque sua mãe era cega. Pois é.

Diálogos banais são ditos com a leveza de bigornas. A pompa oca ecoa uma profundidade de pires. Descabelado, o artista por fim convence os cientistas tacanhos da nobreza de sua busca, da força da Arte, com maiúscula de mármore. Mas aí é tarde, "Soundtrack" acabou.

O filme foi dirigido por dois publicitários, o que explica a sua pretensão. A dupla caipira assina o filme assim: "300ml". Porque queria ser uma marca de entendimento transnacional, e que aludisse ao conceito de "conteúdo". Genial, não?

O par de provincianos se gaba de ser high-tech. Festeja ter feito nevar sob o sol de rachar de Jacarepaguá. É por meio da tecnologia e da língua franca da publicidade que "Soundtrack" ascende à arte cosmopolita. Não deixa de ser uma novidade.

Desde o romantismo, os artistas buscaram a Nação, nem que fosse pela cor local. No modernismo, Oswald de Andrade aspirou à antropofagia, deglutir o estrangeiro e vomitar no mundo a nossa selvageria: o "tupi or not tupi". Seríamos universais porque brasileiros.

Já Mário de Andrade pondera, em 1939, que as nossas obras não iriam obter do mundo "o aplauso que merecem" porque o problema era "mais social que estético". Países onde "a moeda vale", cujos "Exércitos vão decidir muita coisa na guerra", são os que dão as cartas também na arte.

Como o subdesenvolvimento não é um estágio pelo qual os países pobres passam, mas um estado do mundo, a tensão nacional se transmuta. Em "Bye Bye Brasil", ela aparece quando a Caravana Rolidei comemora "está nevando no sertão!" e a neve, esplendidamente falsa, encanta interioranos embasbacados.

Em "Soundtrack", a neve continua falsa, mas é motivo de regozijo. Os tristes trópicos ficaram para trás. Agora, o brasileiro tira fotos de si mesmo no gelo para demonstrar que é outro. O filme abandona a identidade nacional para ser arte.

Se "Soundtrack" é o futuro, então adeus, Brasil? Talvez não. Veio daqui do lado, da Argentina, "O Cidadão Ilustre". O filme conta a história de um escritor que fugiu para a Europa, ganhou o Nobel e, quase 40 anos depois, retorna ao seu vilarejo.

O ressentimento entre o artista e seu povo é mútuo. "O Cidadão Ilustre" não é nenhuma revolução estética. Mas não é anódino. Mais que uma comédia simpática a um público internacional, é um filme que critica a condição argentina. Já em "Soundtrack" a neve cai sobre os zumbis nacionais.


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