Folha de S. Paulo


Ninguém melhor do que Drauzio para contar o que as prisões se tornaram

Bruna Barros/Editoria de Arte/Folhapress
Bruna de 17.jun.2017.

O novo livro de Drauzio Varella, "Prisioneiras", da Companhia das Letras, trata de mulheres enjauladas. Ele conta que, como elas não têm onde cair mortas quando saem da prisão, novos crimes e condenações são inelutáveis. Para algumas a cadeia é preferível à liberdade. Ao menos não há crack no cárcere.

O livro é uma desgraceira só. Por frequentar penitenciárias há 28 anos, o autor é pessimista. Ele diz que o problema prisional ficou intratável com as detenções em massa. A repressão burra às drogas fez com que o número de presas crescesse 567% em 14 anos, passando de 5.600 para 37 mil.

Um ar podre de pântano paira sobre "Prisioneiras": o do inevitável. Novos ventos, todavia, vêm revirando o lodaçal. Drauzio começou a cuidar de detentos em 1989. Vieram desde então a chacina no Carandiru, a fundação do Primeiro Comando da Capital e a explosão do crack. E tudo mudou.

Para pior. O massacre dos 111 marcou o apocalipse do sistema fundado na fúria policial. Os presos revidaram e criaram o PCC. O crack devastou os presídios, dizimando milhares. Das ruínas do Estado surgiu a nova ordem, violenta de alto a baixo.

Ei-la, a ordem vigente: o Primeiro Comando proibiu o crack nos presídios; controla todas as cadeias para homens e 90% das femininas; enraizou-se em todo o país; trafica, rouba e mata; corrompe e comanda partes da polícia; domina periferias, elege parlamentares, negocia de igual para igual com o Estado.

Se não há redenção à vista, há testemunho. Precedido por "Estação Carandiru" e "Carcereiros", "Prisioneiras" encerra a trilogia do médico do Brás sobre prender e punir. O painel que ele constrói tem alcance maior que o dos especialistas e é mais profundo que o relato jornalístico. Tem a energia do longamente vivido, do apreendido e pensado.

A trilogia ecoa às vezes dois livros que se passam na Sibéria do século 19. Em "Recordações da Casa dos Mortos", Dostoiévski escreve sobre seus quatro anos de prisão nos confins do império russo. Tchékhov conta em
"A Ilha de Sacalina" o que descobriu quando investigou uma colônia penal czarista.

As diferenças dos livros de Drauzio com o de Dostoiévski são nítidas. O russo foi preso político e as "Recordações" têm muito de ficção. Já Tchékhov era médico também, e tinha uma curiosidade parecida com a de Drauzio, de natureza objetiva. Mas Tchékhov passou apenas três meses entre os presos, e não tratou deles.

O que prevalece nos livros dos três é a crueldade do universo que retratam. "Cárcere" deriva da palavra latina que designa o lugar onde ficavam as carroças. "Penitenciária" remete a penar, penitenciar-se. A prisão não apenas aparta certas pessoas da coletividade, imobilizando-as como coisas ou como a morte.

Presídios existem isso sim para atormentar gente. São lugares onde o sadismo da sociedade é sancionado e –como na Rússia autocrata e no Brasil democrata– incentivado. Ninguém melhor que um médico, no exercício do seu metiê, para observar a dor e o sofrimento. Ninguém melhor do que Drauzio Varella.

Prisioneiras
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Porque ele não trata do espírito, e sim do corpo, da vida material que molda o espírito. Ele escutou as histórias das pacientes "cum grano salis", e as pensou a partir de pressupostos científicos. É na contramão, depois de comparar e pensar, que se permite generalizações –que jamais reproduzem preconceitos em moda. Não é o sabichão de praxe.

Ele observa, por exemplo, que na cadeia, assim como entre grupos de chimpanzés e humanos, "a liderança não é necessariamente exercida pelo mais forte, mas por aquele com mais habilidade para formar coalizões". Aplica o conceito ao PCC, e não a Temer.

Ninguém melhor do que Drauzio para contar o que as prisões brasileiras se tornaram. Para dizer o que as prisões dizem da sociedade que as gerou e gere.


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