Folha de S. Paulo


Nossas vidas são Suíças

Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração Bruna Barros 0605

"Além das Palavras" é um raro filme vindo da Inglaterra, o opulento império teatral que, no entanto, gerou um cinema supérfluo, puro joio. Felizmente, nesse caso o joio é joia. Se não busca bilheteria, ele também não é bijuteria, filme de festival "" não foi feito para que seu diretor possa passear pelo mundo.

"Além das Palavras" é, isso sim, obra de arte. Foi dirigido por Terence Davies, de 71 anos, que nasceu numa família operária, católica e com dez filhos. Trabalhou uma década num escritório, virou ator, romancista e fez nove filmes. Foi um percurso tateante e para fora.

Já a protagonista do filme, Emily Dickinson, andou para dentro e tendeu à paralisia. Em vida, a poeta de Massachusetts publicou dez poemas apenas, todos anônimos. Ficou 25 anos sem sair de casa, não recebia ninguém "" só se vestia de branco "" teve furiosas paixões epistolares e platônicas. Morreu em 1886, aos 55 anos. Ninguém sabia dela.

Lavinia, sua irmã, achou então 1.775 poemas dela numa gaveta. Curtos e complexos, eles suscitaram uma mirabolante fortuna crítica. Seu prestígio superou o de Longfellow, bardo oficial do século 19 ianque. Emily Dickinson podou até a prolixa relva de Walt Whitman.

As universidades Amherst e Harvard se uniram para pôr seus manuscritos na internet. Faz sentido: os versos são condicionados pela forma do papel no qual escreve; estão cheios de travessões disjuntivos; a sintaxe é esburacada por elipses; as maiúsculas brotam ao léu.

É uma poesia árida e adulta, cuja atração crescente assombra. Dois dos seus versos mais conhecidos são "Não sou Ninguém!" e "Senti um Féretro no meu Cérebro". Nem a crítica literária feminista, tão presunçosa, consegue se aproximar dessa obra, e muito menos logra explicá-la.

A primeira virtude de "Além das Palavras" é, justamente, não explicar os poemas, ou ilustrá-los com cenas da vida da poeta. Eles servem quase de trilha sonora. Porque o que se retém deles é uma melodia, uma impressão estranha. Ultraconcentrados, eles precisam ser lidos e relidos, até comporem uma imagem concreta, em geral ambígua. Um exemplo:

Nossas vidas são Suíças -

Tão quietas - tão Frias -

Até que uma tarde tola vem,

Os Alpes abrem a Cortina

E enxergamos muito além!

Olha a Itália bem ali!

Mas como a polícia -

Os Alpes solenes -

Os Alpes sirenes

Sempre intervêm!

Quanto à vida de Emily Dickinson, Davies tomou liberdades. Criou até uma personagem, a amiga Vryling Buffan, que mantém diálogos intensos e espirituosos com a escritora. São estilhaços de suas cartas e versos. Novamente, eles deixam entrever a obra, e formam um mosaico possível da personalidade da autora.

O diretor, contudo, manteve o que parece ter sido a divisão essencial da vida de Emily Dickinson. Assim, o filme se divide em duas partes. A primeira mostra uma moça livre, flor silvestre de uma família encabeçada por um livre-pensador, ainda que puritano. O filme é uma comédia de costumes, na qual a razão ilumina o obscurantismo.

Na segunda, as luzes se invertem. A guerra civil começa e o patriarca deixa de argumentar: dá ordens. A mãe submerge em melancolia. O irmão se revela um traidor abjeto. A agressividade toma lugar da graça. Como há muito não se vê no cinema, onde só se morre de tiro ou explosão, doenças, dor, pranto e funerais se sucedem.

"Além das Palavras", portanto, é um filme adulto, que solicita a inteligência e sensibilidade do espectador. Ele se propõe a mostrar algo –pouco– de uma pessoa. Como consegue, ainda que nos limites de certo convencionalismo, é uma obra rara nos dias de hoje, de telas atulhadas de facilidades e reducionismos, brutais ou de autoajuda.

Nem a religião, nem a amizade, nem a família, nem a solidão, talvez nem a poesia, atenuam o sofrimento da Emily Dickinson de Davies. De jovem espevitada e cheia de espírito ela se decompõe numa assombração lívida e quiçá maníaca. Contribui para isso a interpretação seca de Cynthia Nixon (a ruiva Miranda de "Sex and the City"). Nos ataques de nefrite, fica difícil até olhá-la.

"Além das Palavras" se transforma então em tragédia. A poesia propicia que se veja uma vida melhor. Mas os Alpes, solenes, estão bem ali, sirenes a impedir que a Suíça –quieta e fria– chegue à Itália.


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