Folha de S. Paulo


O diário notável da mulher oculta

Editoria de Arte/Folhapress
Ilustra da contra de 22.abr.2017 - Bruna Barros

Jean Lucey Pratt tinha 31 anos e era virgem. Inglesa, estudara arquitetura e jornalismo em Londres. Em janeiro de 1941, os bombardeios nazistas se sucediam sobre a cidade. No dia 23, uma sexta-feira, a moça anotou no seu diário:

"Eu quero, preciso de um marido. Milhares de outras fêmeas frustradas devem sentir a mesma coisa -por que acho então que terei mais sorte? Porque pretendo achar um. É preciso enfrentar o problema de maneira positiva, juntar o que tenho de bom, aceitar as deficiências e ir em frente com botas e esporas".

Ela listou o que tinha a favor: aparência razoável; boa índole e equilíbrio psicológico; capacidade de atrair fisicamente; competência para conversar sobre literatura, teatro, arquitetura e os países que visitara.

Arrolou também seus déficits: uma mente confusa, porosa e mal treinada; a tendência a se fechar e emudecer à primeira dificuldade; uma frustrante consciência das próprias fraquezas.

Empregou imagens da guerra à sua volta para traçar a estratégia de conquista de um marido: "preciso ir ao campo de batalha e aprender a lutar". Admitiu que pudesse "ser derrotada, mas preciso saber que tentei quando tinha chance de vencer".

Ao contrário da Inglaterra, Jean perdeu a guerra. Morreu solteira, aos 77 anos. Mas livrou-se da virgindade dias depois de enumerar seus prós e contras. Ela mesma tomou a iniciativa de seduzir um recém-conhecido. A experiência foi ao mesmo tempo "agradável e desagradável".

Pudera. O tipo que levou para a cama, Francis, era "encarquilhado", "cansativo e irritante", "dogmático", um "neurótico total", que ainda por cima tinha mãos feias. Logo que superaram a barreira da comunicação, ele se mostrou "morbidamente absorvido por sexo".

Não foi à toa que, após as preliminares, Jean tenha se recostado e avisado Francis: "estou pronta para o pior!" Para si mesma, assinalou: "esse é o meu primeiro amante; um começo nada promissor". E matizou: "é um enorme alívio sentir que não sou uma completa ignorante".

Bombas alemãs caíram perto da sua casa naquela época. Ela viu milhares de pessoas dormindo no metrô porque perderam tudo da noite para o dia. Ficou empolgada com a "indestrutibilidade" de Londres, com gente comprando chapéus e almoçando enquanto soavam sirenes de alerta. Raciocinou:

"A história é feita por pessoas. Não é uma série de reinados, batalhas e política partidária, mas uma trama sem fim de eventos criados por pessoas vivas, pessoas movidas por emoções, ideais, paixões".

A publicação do diário póstumo de Jean Lucey Pratt, "Uma Mulher Notável", provocou uma pequena comoção no Reino Unido. Nunca se lera nada igual: começando aos 15 anos, ela narrou por seis décadas a fio o que se passava consigo e ao redor.

Mais consigo do que ao redor. Ela pôs no papel sobretudo suas expectativas e reveses, em meio às miudezas do cotidiano. Assim, entrelaçou a esperança malograda de ser escritora com seu apego a gatos, a imensa vontade de ser amada com as estantes de sua pequena livraria.

Como Jean viveu num ambiente acanhado, o diário não é engenhoso nem denso. Mas incorpora a força que ela auferiu da literatura inglesa. Logrou então o que é raro até na arte -que se acompanhe com afeição 60 anos de uma vida banal; que se perceba o comum, e ele fascine e ensine.

Jean não escrevia quando deprimida, o que acentua a graça de seu estilo. Ela delineia situações com economia certeira, imagina observações ardidas e aproximações bruscas -ou seja, "Uma Mulher Notável" lembra às vezes "Minha Vida de Menina", da brasileira Helena Morley.

Sua prosa está viva, revela mais que a de muitos medalhões daquele tempo. E tem a vantagem que Jean começou a escrever em 1925 e só parou em 1986. Não é só a história, também a literatura é feita por gente comum.


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