Folha de S. Paulo


Jamais um governador do Rio foi tão unha e carne com a classe dominante

Numa churrascaria em Copacabana, nos anos 90, Sergio Cabral, o pai, falou de sua juventude na Zona Norte. Da boemia dos pobres. Dos seus meses em cana. Da fleuma da fina flor do samba. Do balanceio carioca entre ordem e desordem.

Cabral frequentara a nata da malandragem. Conhecera o Rio dos sem-emprego, a cidade onde, segundo Antonio Candido, "não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia". Falou de uma sociedade áspera e fraterna –aquela na qual a gente se vira de sol a sol, e se ajuda, para sobreviver.

A nostalgia permeava o seu papo. Depois de dois mandatos de vereador, era conselheiro no Tribunal de Contas, aonde chegara por compadrio político. Ocupava um cargo nevrálgico e se fazia de pícaro: relatava estripulias com funcionárias, mas não dizia o que de fato fazia.

Como a simpatia lhe era natural, aceitava-se com tolerância o seu eventual comércio de favores. Seria um modo malandro de Cabral descolar um cacau, encostado num cargo público perto do Bola Preta.

Outro almoço, duas décadas depois, no Palácio Guanabara, mostrou a malandragem gangsterizada das altas esferas. A verve leve do velho Cabral virara vício calculista para Sergio Cabral Filho se arrumar. Na maior brodagem, o governador tratava todos como cupinchas.

Com astuta bonomia, contava que, ao viajar de um comício para outro na campanha das Diretas, fumara um beck no avião com Beto Guedes e Aécio Neves. Com cinismo cru, louvava o "regime de metas" e a "transparência no uso do dinheiro público".

Ao presidir a Assembleia Legislativa, Cabral Filho instituíra 60 CPIs. Para investigar o sistema financeiro, uma delas intimou um banqueiro que, tempos depois, relatou ter recebido o recado que a convocação poderia ser cancelada mediante R$ 3 milhões.

Amigos de Serjão martelavam: Serginho não presta. O governador não estava nem aí. Padecia de laborfobia e exibicionismo ostentatório, corporificados em viagens sequenciais, mancebias e uniões fortuitas, ternos italianos e privada polonesa, dancinha com lenço na cabeça, seu cachorro no helicóptero rumo a Mangaratiba.

Há quem o explique com perversões ou cupidez e faça julgamentos morais. Mas o seu caso é de sociologia. Jamais um governador fluminense foi tão unha e carne com a classe dominante. Garotinho se esfolou em quinas e arestas; Cabral era bola de bilhar sobre régua de cálculo.

Não foi só o cachorro Juquinha que voou no helicóptero. Todos os grandes partidos, as federações patronais, as probas figuras de proa da indústria e do comércio –os barões todos encheram as burras com Cabral.

Ele lhes propiciou lucros a rodo enquanto entesourava. Sabia-se disso de cor e salteado na Vieira Souto, que fez boca de siri em benefício próprio. O Country Club agora joga bosta na Geni de Bangu porque a hipocrisia é um pilar da nossa civilização.

Tudo é burla na nova "Ópera do Malandro"? Não. Em 2013, a bagaceira interditou por 40 dias a rua de Cabral, no Leblon. Como parte dela desceu do Vidigal, a gente de bem logo disse que eram malandros atrapalhando o trânsito.

Um dia antes do estouro do cafofo de Cabral, uma massa ignara ameaçou a Assembleia, onde capatazes do high society podavam o salário alheio. Como faz com a malandragem desde a Colônia, o poder carioca baixou o pau. A questão social, se diz ainda no Antiquarius, é um caso de polícia.


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