Folha de S. Paulo


A nação mais desenvolvida elegeu uma criatura da indústria cultural

Mandel Ngan - 9.nov.16/AFP
(FILES) This file photo taken on November 9, 2016 shows President-elect Donald Trump speaking during election night at the New York Hilton Midtown in New York. Donald Trump will keep his vow to deport millions of undocumented migrants from the United States, he said in an interview to be broadcast November 13, 2016, saying as many as three million could be removed after he takes office.
O presidente eleito Donal Trump fala no dia seguinte à sua vitória eleitoral

A primeira questão do Enem, no começo do mês, pedia que se interpretasse um texto de três frases. Elas associavam a indústria cultural à "liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa". Foram tiradas de "Dialética do Esclarecimento", livro de Theodor Adorno e Max Horkheimer de 1947.

Como bem sabem (ou deveriam saber) os 5,8 milhões de estudantes que fizeram o Enem, os dois pensadores alemães empregaram conceitos da filosofia, da crítica literária e da sociologia. Usaram Marx e Freud para sondar os destinos do Iluminismo —"o emergir do homem da imaturidade autoimposta", segundo Kant. Para eles, as luzes da razão científica transmutaram-se em mistificação massificadora. Hollywood, o rádio, desenhos animados, o jazz e o pop configuravam a indústria cultural. Ela é o triunfo da mercadoria e do mito sobre o esclarecimento libertário.

As usinas da cultura oferecem produtos que são sempre a mesma coisa: mais uma novela, uma série de internet, um blockbuster, um best-seller, um meme, um funk pancadão. Na cela de seu celular, ou ante uma pergunta do Enem, o homem automático se crê livre.

Divertir-se, para ele, significa teclar um like e mudar de tela, estar de acordo com a vida mutilada. Por isso, Adorno e Horkheimer afirmam que a humanidade, "em vez de entrar numa condição verdadeiramente humana, afunda num novo tipo de barbárie".

Como que para sublinhar a atualidade da "Dialética do Iluminismo", dois dias depois do Enem houve eleições nos EUA. A nação de maior desenvolvimento científico e cultural da Terra, de bem assentada democracia, elegeu uma criatura da indústria cultural.

Um astro de reality show será presidente. Trump é uma figura do progresso. Seu modo de comunicação preferido é o Twitter. Seus comícios combinam a oratória de um rapper com a de um comediante de stand-up. Tem a retórica violenta de um blogueiro.

O racismo, a demagogia e a agressividade de Trump condizem com a tecnologia mais avançada. Com a combustão tóxica de forma adiantada com conteúdo atrasado, venceu os partidos tradicionais, a grande imprensa, os institutos de pesquisa, as opiniões bem estabelecidas, o venerado Obama e o sistema político inteiro.

Sua oponente, representante politicamente correta de Wall Street, teve mais votos populares. Mas Trump foi eleito segundo as regras da democracia americana. Elas permitem que possa deflagrar, sem consulta ao Congresso, uma guerra nuclear.

Adorno criou horror à prática política, que considerava um aspecto da razão manipuladora. Preferia criticar a sociedade lesada e sem sentido, "a vida que não vive". Por isso, Lukács o acusou de conformismo, de hospedar-se no Grande Hotel Abismo, "um belo hotel, provido de todo conforto, à beira do nada, do absurdo".

A sua obra, contudo, é política até quando analisa música ou astrologia. Intelectual de esquerda, mas crítico do stalinismo, se exilou durante o Terceiro Reich. Ficou na Califórnia, onde Hollywood florescia. De volta à Alemanha, viu-a obliterar o passado nazista. É o caso de, não só no Enem, voltar a seus livros. Sobretudo aqui e agora, inclusive na Pousada Abismo. Onde outros enxergavam caricaturas políticas e divertimentos inócuos, Adorno apontou as semelhanças entre a opressão fascista e a liberal. Onde o irracionalismo anárquico dava o tom, ele auscultou os mecanismos ocultos da exploração do capital.


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